Questões Discursivas de Informativos.2019/2020

Questões Discursivas de Informativos.2019/2020

QUESTÃO 1: INÉDITA COM O PACOTE ANTICRIME.

Amarildo Barriga, servidor público da prefeitura de Deus me Livre do Oeste foi tido como suspeito do crime de peculato, pela subtração de três computadores da prefeitura da cidade. O promotor de justiça local entendeu que não havia o lastro probatório mínimo para a deflagração da ação da ação penal, já que o indiciado possuía álibi e, para tanto, remeteu os autos do inquérito para a chefia da instituição, ao argumento de falta de justa causa para a propositura da ação penal. O prefeito, indignado, foi bater as portas do Conselho Superior do Ministério Público, a fim de que tal arquivamento fosse revisto. Tal proceder do prefeito encontra consonância com o atual artigo 28 do CPP?

Resposta: A resposta afirmativa se impõe. Em sendo o Município - vítima (sujeito passivo) do crime de peculato, e, em não possuindo o Município procurador, a representação pelo prefeito se deu de maneira escorreita.

Note o leitor a pedra de toque do art. 28 § 2º do CPP: Agora quem faz as vezes de fiscal do princípio da obrigatoriedade no caso de arquivamento do inquérito policial não é mais o juiz, mas os prefeitos e procuradores dos entes federativos. O juiz cedeu a toga ao prefeito, em verdadeira desjudicialização. Tal entendimento se deu com a introdução em nosso ordenamento jurídico do Pacote Anticrime. Observe o leitor a nova redação do art. 28 do CPP, com a redação fornecida pelo pacote anticrime:

Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei.      (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019). § 2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial.   

O pacote Anticrime encampado pela Lei 13.964/19 foi vetado em alguns artigos, mas foram vetos de menor monta. Logo, a sua essência restou preservada.  Registre-se que a Lei 13.964/19 foi sancionada, como “presente” de Papai Noel, na véspera de Natal, em 24 de dezembro de 2019, e, tido como a grande novidade natalina, entrou em vigor após o lapso temporal de trinta dias, depois de sua publicação oficial. Já está nas ruas, bancos, praças e tribunais brasileiros!

O juiz de garantias, conhecido como juiz imparcial que irá atuar antes da instrução probatória, já era uma realidade discutida pelo ordenamento jurídico em tempos pretéritos. Muito embora seja considerado uma novidade no pacote Anticrime, de novidade pouco se tem. Isso porque o instituto já era previsto no projeto do Código de Processo Penal, já tendo sido aprovado (até a presente data!) no Senado Federal.  O tema veio a lume com o projeto do Código de Processo Penal por constituir-se em realidade fática no cenário nacional. Surge para suprir uma demanda e prevenção à parcialidade do magistrado. Não vamos muito longe:  Não houve mesas paralelas e o olhar superior do juiz, mas cadeiras laterais entre juízes e promotores de justiça no caso da operação lava jato, em que tais personagens seguiram, trocando, entre si, “figurinhas” dentro e fora do recinto. Para banir tais práticas tornou-se premente a figura do juiz de garantias. Garantidor do quê? Ora, garantidor de um processo adequado, isonômico e justo, presidido por um juiz imparcial.

A visão garantista de Luigi Ferrajoli já, de há muito, criticava a produção de provas de ofício pelo magistrado, insculpida no art. 156 do CPP, rotulando, dessa forma, o sistema acusatório de impuro. Era água de barro na piscina limpa.

Preconizavam muitos estudiosos sobre o tema definindo tal contexto em caráter suplementar de produção de provas de ofício, para que tal dispositivo fosse salvo no sistema. Mas o Código, já uma colcha de retalhos, pedia socorro e pouco gente ouvia.  A visão garantista de Luigi Ferrajoli muito já criticava a produção de provas de ofício pelo magistrado, insculpida no art. 156 do CPP, rotulando, dessa forma, o sistema acusatório de impuro. Falavam em caráter suplementar de produção de provas de ofício, para que tal dispositivo fosse salvo no sistema. Mas o Código, já uma colcha de retalhos, pedia socorro e pouco gente ouvia. 

A fim de resgatar água limpa, o objetivo maior do pacote Anticrimes foi banir a figura do juiz paternalista. Se a parte não produziu a prova, com menos razão deverá produzi-la quem irá julgá-la. Se a prova não chegou aos autos pelas mãos das partes (os protagonistas da cena do crime) compete ao juiz absolver o réu por insuficiência de provas, sob pena de violação a um pressuposto processual de validade do processo, qual seja, a imparcialidade do magistrado.

O pacote Anticrimes retirou o juízo do papel de fiscal do princípio da obrigatoriedade. Em outras palavras: juiz, não meta o bedelho aonde não foi chamado.

Obs. O tema é novo e ainda não há julgados acerca do tema do juiz de garantias!

QUESTÃO 2

 Carlos Pinico era conhecido receptador na comunidade em que vivia. Dia desses, foi delatado pela namorada Lola Bolero, enciumada com as paqueras paralelas do gajo. Preso, julgado e condenado estava recolhido no complexo penitenciário do seu Estado. Mas de bolero passou a dançar funk. Isso porque Pinico era vinculado a uma organização criminosa poderosíssima no país, da qual ajudava a comandar do celular que ganhou no bolo de visita. A transferência de Pinico para um presídio federal de segurança máxima era mais que urgente. O administrador do presídio redigiu um requerimento ao juiz, que sem ouvir a defesa, transferiu o preso, de forma imediata, ao presídio federal mais próximo. Irresignada, a defesa insurgiu-se contra a decisão do magistrado taxando-a de arbitrária e com abuso de autoridade. A pergunta que não quer calar é a seguinte: O magistrado, ao assim agir, teria praticado o crime de abuso de autoridade?

A resposta negativa se impõe.

Dispõe a Súmula 619 do STJ:

Não fere o contraditório e o devido processo decisão que, sem ouvida prévia da defesa, determina uma transferência ou a permanência de um custodiado em um estabelecimento penitenciário federal.

Para fins de conhecimento cabe a nós destacar que o Brasil possui cinco estabelecimentos federais.

A lei que dispõe sobre a transferência de presos, como já dito é a Lei 11.671/08, em casos de presos oriundo de presídio estadual transferidos para o federal, como, a título de exemplo, presos de alta periculosidade recolhidos em presídio estadual que necessitaram, em algum momento, em serem transferidos para  um presídio de segurança máxima.

E, aqui, cabe um detalhe: Não somente irão para a penitenciária federal presos julgados pela justiça federal. Posso ter um preso da justiça comum estadual ou mesmo um preso provisório, aquele que fora preso preventivamente. O critério para abrigo a penitenciária federal é aquele ligado a periculosidade do preso ou mesmo a segurança pública. Em nada está atrelado aos critérios processuais de competência.

Observando o artigo quinto da lei em comento constatamos quem são os legitimados para solicitarem essa transferência ou inclusão na penitenciária federal, quais sejam: autoridade administrativa, delegado, secretário de Justiça, Ministério Público e o próprio preso. A competência para a decisão da transferência é uma competência conjunta que parte do juízo de origem em diálogo com o corregedor do presídio (autoridade máxima administrativa do presídio federal). Contudo, antes de decidir o juiz deverá ainda ouvir os demais legitimados acima arrolados, no prazo de cinco dias.

Todavia, a própria lei, no mesmo artigo quinto, prevê um contraditório postergado, com remessa do preso para o estabelecimento federal sem a oitiva prévia dos legitimados. São os casos de extrema necessidade, reputados urgentes, desde que motivados. Nesse sentido caminha a lei supra, de mãos dadas com a súmula acima citada.

Repisando. Dispõe a Súmula 619 do STJ:

Não fere o contraditório e o devido processo decisão que, sem ouvida prévia da defesa, determina uma transferência ou a permanência de um custodiado em um estabelecimento penitenciário federal.

Logo, a decisão do juiz foi respaldada em texto normativo e na súmula 619 do STJ e, portanto, não há que se falar na prática de crime de abuso de autoridade.

Tal súmula fora exibida  no Informativo 660 do Superior Tribunal de Justiça, na data de 06 de dezembro de 2019.

QUESTÃO 3

Os empregados da Empresa Philipinho foram contaminados por mercúrio, ao laborarem na produção de lâmpadas fluorescentes na unidade do ABC Paulista. Boa parte dos trabalhadores foram diagnosticados com mecurismo, doença ocasionada pela exposição e contato com o metal, qual seja, o mercúrio. É cediço que a contaminação por mercúrio afeta, principalmente, o sistema nervoso central. Após o inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Philipinho encerrou as suas atividades e, ato contínuo, demitiu todos os seus empregados. Em defesa apresentada em juízo diante de ações indenizatórias propostas pelos em empregados, a empresa alegou que rompido o vínculo laboral não há que se falar em efeitos colaterais do mercurismo aptos a gerarem indenizações. Ademais, argumentou que adotou equipamentos de proteção coletiva e individual com adequação ao meio ambiente do trabalho, aptos a evitarem riscos aos trabalhadores. Tais argumentos defensivos devem ser acatados?

A resposta negativa se impõe. Já se foi o tempo em que o Direito Penal de Intervenção cujo principal expoente é Windfried Hassemer  - que apregoava que o Direito Penal era voltado basicamente à tutela de bens jurídicos individuais - figurando acima do Direito Administrativo e abaixo do Direito Penal - caiu por terra.   

A necessidade de sobrevivência da espécie humana rendeu-se a uma nova interpretação das teorias acerca da proteção ao bem jurídico e de seu corolário, qual seja: o princípio da ofensividade. Hoje, os anseios ambientais pugnam pela adoção do Direito Penal visto como proteção do contexto da vida em sociedade, capitaneado por Günter Stratenwerth - em que o Direito subsume-se a um Direito de gestão punitiva dos riscos gerais, numa radical mudança de enfoque, em que a proteção do bem jurídico individual ganha conotação secundária, abrindo espaço para a tutela direta dos direitos coletivos como contexto da vida, de forma a garantir a própria subsistência desta.

O meio ambiente é direito fundamental do homem de terceira dimensão (direitos de fraternidade!) e, para que ganhe concretude, consubstanciada na força normativa da Constituição, deve o homem protegê-lo, inclusive, de si mesmo! Já se foi o tempo em que o Direito Penal de Intervenção cujo principal expoente é Windfried Hassemer  - que apregoava que o Direito Penal era voltado basicamente à tutela de bens jurídicos individuais - figurando acima do Direito Administrativo e abaixo do Direito Penal - caiu por terra.   

A necessidade de sobrevivência da espécie humana rendeu-se a uma nova interpretação das teorias acerca da proteção ao bem jurídico e de seu corolário, qual seja: o princípio da ofensividade. Hoje, os anseios ambientais pugnam pela adoção do Direito Penal visto como proteção do contexto da vida em sociedade, capitaneado por Günter Stratenwerth - em que o Direito subsume-se a um Direito de gestão punitiva dos riscos gerais, numa radical mudança de enfoque, em que a proteção do bem jurídico individual ganha conotação secundária, abrindo espaço para a tutela direta dos direitos coletivos como contexto da vida, de forma a garantir a própria subsistência desta. O meio ambiente é direito fundamental do homem de terceira dimensão (direitos de fraternidade!) e, para que ganhe concretude, consubstanciada na força normativa da Constituição, deve o homem protegê-lo, inclusive, de si mesmo!

O homem, desbravador de matas, no afã da busca desenfreada por novas tecnologias, ao longo de décadas, atropelou o ecossistema e comprometeu a sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações e, pasmem: até mesmo para as passadas!

Há muito o sistema da compensação (isto é, degradou versus compensou) não é mais satisfatório ambientalmente ao planeta - que vem sofrendo os impactos da degradação humana no próprio ambiente doméstico. Atento a tal cenário, o Superior Tribunal de Justiça, na lavra do julgamento do Recurso Especial 883.656 encampou o princípio do in dubio pro natura, base do princípio da preocupação, cuja consequência imediata é a inversão do ônus da prova. A natureza indisponível do bem jurídico protegido, qual seja, o meio ambiente, impõe uma atuação mais proativa do magistrado no afã de que restem preservados os interesses dos incontáveis sujeitos ausentes, por vezes, toda a humanidade e as futuras gerações.

Para sermos fiéis ao julgado reproduzimos, ao leitor, o teor de sua ementa:

PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL. CONTAMINAÇÃO COM MERCÚRIO. ART. 333 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ÔNUS DINÂMICO DA PROVA. CAMPO DE APLICAÇÃO DOS ARTS. 6º, VIII, E 117 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. POSSIBILIDADE DE INVERSÃO DO ONUS PROBANDI NO DIREITO AMBIENTAL. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO NATURA. 1. Em Ação Civil Pública proposta com o fito de reparar alegado dano ambiental causado por grave contaminação com mercúrio, o Juízo de 1º grau, em acréscimo à imputação objetiva estatuída no art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81, determinou a inversão do ônus da prova quanto a outros elementos da responsabilidade civil, decisão mantida pelo Tribunal a quo. 2. O regime geral, ou comum, de distribuição da carga probatória assenta-se no art. 333, caput, do Código de Processo Civil. Trata-se de modelo abstrato, apriorístico e estático, mas não absoluto, que, por isso mesmo, sofre abrandamento pelo próprio legislador, sob o influxo do ônus dinâmico da prova, com o duplo objetivo de corrigir eventuais iniquidades práticas (a probatio diabólica, p. ex., a inviabilizar legítimas pretensões, mormente dos sujeitos vulneráveis) e instituir um ambiente ético-processual virtuoso, em cumprimento ao espírito e letra da Constituição de 1988 e das máximas do Estado Social de Direito. 3. No processo civil, a técnica do ônus dinâmico da prova concretiza e aglutina os cânones da solidariedade, da facilitação do acesso à Justiça, da efetividade da prestação jurisdicional e do combate às desigualdades, bem como expressa um renovado due process, tudo a exigir uma genuína e sincera cooperação entre os sujeitos na demanda. 4. O legislador, diretamente na lei (= ope legis), ou por meio de poderes que atribui, específica ou genericamente, ao juiz (= ope judicis), modifica a incidência do onus probandi, transferindo-o para a parte em melhores condições de suportá-lo ou cumpri-lo eficaz e eficientemente, tanto mais em relações jurídicas nas quais ora claudiquem direitos indisponíveis ou intergeracionais, ora as vítimas transitem no universo movediço em que convergem incertezas tecnológicas, informações cobertas por sigilo industrial, conhecimento especializado, redes de causalidade complexa, bem como danos futuros, de manifestação diferida, protraída ou prolongada. 5. No Direito Ambiental brasileiro, a inversão do ônus da prova é de ordem substantiva e ope legis, direta ou indireta (esta última se manifesta, p. ex., na derivação inevitável do princípio da precaução), como também de cunho estritamente processual e ope judicis (assim no caso de hipossuficiência da vítima, verossimilhança da alegação ou outras hipóteses inseridas nos poderes genéricos do juiz, emanação natural do seu ofício de condutor e administrador do processo). 6. Como corolário do princípio in dubio pro natura, "Justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento, a partir da interpretação do art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, conjugado ao Princípio Ambiental da Precaução" (REsp 972.902/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 14.9.2009), técnica que sujeita aquele que supostamente gerou o dano ambiental a comprovar "que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva" (REsp 1.060.753/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 14.12.2009). 7. A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, contém comando normativo estritamente processual, o que a põe sob o campo de aplicação do art. 117 do mesmo estatuto, fazendo-a valer, universalmente, em todos os domínios da Ação Civil Pública, e não só nas relações de consumo (REsp 1049822/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, DJe 18.5.2009). 8. Destinatário da inversão do ônus da prova por hipossuficiência - juízo perfeitamente compatível com a natureza coletiva ou difusa das vítimas - não é apenas a parte em juízo (ou substituto processual), mas, com maior razão, o sujeito-titular do bem jurídico primário a ser protegido. 9. Ademais, e este o ponto mais relevante aqui, importa salientar que, em Recurso Especial, no caso de inversão do ônus da prova, eventual alteração do juízo de valor das instâncias ordinárias esbarra, como regra, na Súmula 7 do STJ. "Aferir a hipossuficiência do recorrente ou a verossimilhança das alegações lastreada no conjunto probatório dos autos ou, mesmo, examinar a necessidade de prova pericial são providências de todo incompatíveis com o recurso especial, que se presta, exclusivamente, para tutelar o direito federal e conferir-lhe uniformidade" (REsp 888.385/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 27.11.2006. No mesmo sentido, REsp 927.727/MG, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJe de 4.6.2008). 10. Recurso Especial não provido. PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL. CONTAMINAÇÃO COM MERCÚRIO. ART. 333 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ÔNUS DINÂMICO DA PROVA. CAMPO DE APLICAÇÃO DOS ARTS. 6º, VIII, E 117 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. POSSIBILIDADE DE INVERSÃO DO ONUS PROBANDI NO DIREITO AMBIENTAL. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO NATURA. 1. Em Ação Civil Pública proposta com o fito de reparar alegado dano ambiental causado por grave contaminação com mercúrio, o Juízo de 1º grau, em acréscimo à imputação objetiva estatuída no art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81, determinou a inversão do ônus da prova quanto a outros elementos da responsabilidade civil, decisão mantida pelo Tribunal a quo. 2. O regime geral, ou comum, de distribuição da carga probatória assenta-se no art. 333, caput, do Código de Processo Civil. Trata-se de modelo abstrato, apriorístico e estático, mas não absoluto, que, por isso mesmo, sofre abrandamento pelo próprio legislador, sob o influxo do ônus dinâmico da prova, com o duplo objetivo de corrigir eventuais iniquidades práticas (a probatio diabólica, p. ex., a inviabilizar legítimas pretensões, mormente dos sujeitos vulneráveis) e instituir um ambiente ético-processual virtuoso, em cumprimento ao espírito e letra da Constituição de 1988 e das máximas do Estado Social de Direito. 3. No processo civil, a técnica do ônus dinâmico da prova concretiza e aglutina os cânones da solidariedade, da facilitação do acesso à Justiça, da efetividade da prestação jurisdicional e do combate às desigualdades, bem como expressa um renovado due process, tudo a exigir uma genuína e sincera cooperação entre os sujeitos na demanda. 4. O legislador, diretamente na lei (= ope legis), ou por meio de poderes que atribui, específica ou genericamente, ao juiz (= ope judicis), modifica a incidência do onus probandi, transferindo-o para a parte em melhores condições de suportá-lo ou cumpri-lo eficaz e eficientemente, tanto mais em relações jurídicas nas quais ora claudiquem direitos indisponíveis ou intergeracionais, ora as vítimas transitem no universo movediço em que convergem incertezas tecnológicas, informações cobertas por sigilo industrial, conhecimento especializado, redes de causalidade complexa, bem como danos futuros, de manifestação diferida, protraída ou prolongada. 5. No Direito Ambiental brasileiro, a inversão do ônus da prova é de ordem substantiva e ope legis, direta ou indireta (esta última se manifesta, p. ex., na derivação inevitável do princípio da precaução), como também de cunho estritamente processual e ope judicis (assim no caso de hipossuficiência da vítima, verossimilhança da alegação ou outras hipóteses inseridas nos poderes genéricos do juiz, emanação natural do seu ofício de condutor e administrador do processo). 6. Como corolário do princípio in dubio pro natura, "Justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento, a partir da interpretação do art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 c/c o art. 21 da Lei 7.347/1985, conjugado ao Princípio Ambiental da Precaução" (REsp 972.902/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 14.9.2009), técnica que sujeita aquele que supostamente gerou o dano ambiental a comprovar "que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva" (REsp 1.060.753/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 14.12.2009). 7. A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, contém comando normativo estritamente processual, o que a põe sob o campo de aplicação do art. 117 do mesmo estatuto, fazendo-a valer, universalmente, em todos os domínios da Ação Civil Pública, e não só nas relações de consumo (REsp 1049822/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, DJe 18.5.2009). 8. Destinatário da inversão do ônus da prova por hipossuficiência - juízo perfeitamente compatível com a natureza coletiva ou difusa das vítimas - não é apenas a parte em juízo (ou substituto processual), mas, com maior razão, o sujeito-titular do bem jurídico primário a ser protegido. 9. Ademais, e este o ponto mais relevante aqui, importa salientar que, em Recurso Especial, no caso de inversão do ônus da prova, eventual alteração do juízo de valor das instâncias ordinárias esbarra, como regra, na Súmula 7 do STJ. "Aferir a hipossuficiência do recorrente ou a verossimilhança das alegações lastreada no conjunto probatório dos autos ou, mesmo, examinar a necessidade de prova pericial são providências de todo incompatíveis com o recurso especial, que se presta, exclusivamente, para tutelar o direito federal e conferir-lhe uniformidade" (REsp 888.385/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 27.11.2006. No mesmo sentido, REsp 927.727/MG, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJe de 4.6.2008). 10. Recurso Especial não provido.

          QUESTÃO 4

O Congresso Nacional aprovou uma lei ordinária concedendo isenção do imposto ICMS para o leite em pó em todo o território nacional, como mecanismo de atenuar a crise financeira lastreada por todo o país e no mundo, em consequência da pandemia do corona vírus, já que barateando o preço do leite, a população, por conseguinte, se alimenta melhor. Os Estados da federação judicializaram a questão, ao argumento de falecer ao ente federativo competência para tal desiderato. Assiste razão aos Estados? E se a União Federal tivesse se valido de tratado internacional para conceder a isenção do mesmo tributo com a Argentina, por exemplo?

A resposta afirmativa se impõe. Faltaria um requisito de admissibilidade para a instituição de isenção de ICMS pela União, qual seja: a competência para a instituição, incidindo, pois, em isenção heterônima, vedada constitucionalmente. 

Competência tributária é a aptidão para criar in abstrato tributos, bem como modificá-los e extingui-los, com autorização constitucional para tanto. Em nome do princípio do federalismo o poder de tributar foi delimitado, poder esse, que englobou a competência legislativa, fatiando o bolo (receita) entre as pessoas políticas: União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

A distribuição rígida de competências entre os entes fora elaborada para que não houvesse conflito entre eles, de forma que a mesma competência não pode ser exercida simultaneamente. Em nome do princípio do federalismo o poder de tributar foi delimitado, poder esse, que englobou a competência legislativa, fatiando o bolo (receita) entre as pessoas políticas: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. (Grifos e sombreados nossos!)

Contudo, caso tal isenção fosse veiculada pela União, através de tratado, tal mecanismo poderia ter sido implementado.

Reproduzimos, aqui, a ementa e parte do voto dos Ministros do STF quando do julgamento RE 804350 PE. Confira o leitor:

DIREITO TRIBUTÁRIO. ICMS. IMPORTAÇÃO DE LEITE EM PÓ DA ARGENTINA. PAÍS SIGNATÁRIO DO GATT. ISENÇÃO HETERÔNOMA. TRATADO INTERNACIONAL FIRMADO PELA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. CONSTITUCIONALIDADE. ALCANCE E LEGITIMIDADE DE ISENÇÕES À LUZ DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. SIMILARIDADE ENTRE PRODUTOS NACIONAIS E ESTRANGEIROS. APRECIAÇÃO EM SEDE EXTRAORDINÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 01/12/2010. A matéria versada no art. 5º, incisos XXXV, LIV e LV, da Constituição Federal não foi arguida nas razões do recurso extraordinário, sendo vedado ao recorrente inovar no agravo regimental. A jurisprudência desta Suprema Corte consolidou-se no sentido da constitucionalidade das desonerações tributárias estabelecidas, por meio de tratado, pela República Federativa do Brasil, máxime no que diz com a extensão, às mercadorias importadas de países signatários do GATT, das isenções de ICMS concedidas às similares nacionais (Súmula STF 575).

O mesmo raciocínio já foi esposado pela Corte Cidadã, no caso da isenção do ICMS da importação do peixe merluza. Confira o leitor o julgado extraído do RESP528.288/SP:

EXECUÇÃO FISCAL. Embargos. ICMS. Pescado (Merluza). Produto importado de país signatário do GATT. Isenção. Hipótese não ocorrente. Convênio interestadual 60/91. Precedentes do STJ. Embargos improcedentes. Recurso não provido.

Questão 5

O Governo Federal, preocupado com o estado de calamidade pública que assola o país, devido a pandemia do coronavírus edita medida provisória (MP 954) estipulando que, enquanto perdurar a situação emergencial, as empresas de telefonia (fixa e móvel) deveriam repassar ao IBGE os dados de seus clientes, tais como os nomes, telefones de contato, endereço físico e virtual, etc. Maria da Ladainha ficou sabendo, não gostou e como integrante da classe dos advogados foi correndo levar a notícia para a Ordem dos Advogados do Brasil. Dizia ela: “ora bolas, estão querendo me coisificar, me transformar em números estatísticos!” A intenção do Governo Federal foi boa, qual seja, a de evitar que os próprios funcionários das pesquisas não se contaminassem com o contato presencial. Contudo, já diz o velho ditado e as más línguas, “de boas intenções o inferno está cheio.” Nesse pensar, a Ordem dos Advogados do Brasil, o PSDB, o PSB e PSOl (partidos políticos) ajuizaram ações diretas de inconstitucionalidade (ADI6387, ADI 6389, ADI 6388, ADI 6390 e ADI 6393) alegando, dentre outros fundamentos, violação à dignidade da pessoa humana, honra, imagem, vida e ao próprio sigilo de dados. Em contrapartida, vozes outras argumentaram que melhor que sejam circulados dados do que pessoas, com riscos maiores de contaminação. Considerando a gravidade da crise sanitária que assola o país e o mundo, o que preenche os requisitos de relevância e urgência na edição da medida provisória, deve tal medida provisória ser declarada inconstitucional e, por consequência, banida do ordenamento jurídico?

A resposta afirmativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do Informativo 976 examinou a questão. As políticas públicas são necessárias e bem-vindas nesse período de grave crise sanitária, em que o número de mortes cresce a cada dia. Contudo, não se pode, sob a pecha de instituir políticas públicas emergenciais, atropelar direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Há um núcleo duro que deve ser respeitado (limite dos limites). Tal providência sequer foi submetida a debate público, ou seja, o Governo Federal, ao editar a referida medida provisória, fez tábula rasa da administração dialógica. Ademais, embora os direitos e garantias fundamentais sejam relativos, que admitam ponderações, o desrespeito ao devido processo legal no seu aspecto substancial (princípio da razoabilidade) constitui o próprio núcleo duro e deve, portanto, ser respeitado. A nosso sentir, o acesso amplo aos dados permite, por via oblíqua, o conhecimento de dados que extrapolam a finalidade da medida e, nesse ponto, há sensível violação aos direitos da personalidade. O ser humano não pode ser coisificado. Reduzido a números. O seu nome, o seu domicílio são emanações do seu direito da personalidade. Não sejamos “maquiavelianos”, a ponto de defendermos que os fins justificam os meios, por mais nobres que os fins possam parecer.

Para sermos fiéis ao julgado exarado pela Suprema Corte reproduzimos, aqui, trechos do julgado. Confira o leitor:

DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Covid-19: empresas de telefonia e compartilhamento de informações com o IBGE


O Plenário, por maioria, referendou medida cautelar em ações diretas de inconstitucionalidade para suspender a eficácia da Medida Provisória 954/2020 (1), que dispõe sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras de Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) e de Serviço Móvel Pessoal (SMP) com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (Covid-19).O Tribunal esclareceu que as condições em que se dá a manipulação de dados pessoais digitalizados, por agentes públicos ou privados, consiste em um dos maiores desafios contemporâneos do direito à privacidade. A Constituição Federal (CF) confere especial proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas ao qualificá-las como invioláveis, enquanto direitos fundamentais da personalidade, assegurando indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X). O assim chamado direito à privacidade e os seus consectários direitos à intimidade, à honra e à imagem emanam do reconhecimento de que a personalidade individual merece ser protegida.... A fim de instrumentalizar tais direitos, a CF prevê, no art. 5º, XII, a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer...
Decorrências dos direitos da personalidade, o respeito à privacidade e à autodeterminação informativa foram positivados, no art. 2º, I e II, da Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), como fundamentos específicos da disciplina da proteção de dados pessoais.
O colegiado observou que o único dispositivo da MP 954/2020 a dispor sobre a finalidade e o modo de utilização dos dados objeto da norma é o § 1º do seu art. 2º. E esse limita-se a enunciar que os dados em questão serão utilizados exclusivamente pelo IBGE para a produção estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares. Não delimita o objeto da estatística a ser produzida, nem a finalidade específica, tampouco sua amplitude. Igualmente não esclarece a necessidade de disponibilização dos dados nem como serão efetivamente utilizados...Ao não definir apropriadamente como e para que serão utilizados os dados coletados, a MP 954/2020 não oferece condições para avaliação da sua adequação e necessidade, assim entendidas como a compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas e sua limitação ao mínimo necessário para alcançar suas finalidades. Desatende, assim, a garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), em sua dimensão substantiva. De outra parte, o art. 3º, I e II, da MP 954/2020 dispõe que os dados compartilhados “terão caráter sigiloso” e “serão utilizados exclusivamente para a finalidade prevista no § 1º do art. 2º”, e o art. 3º, § 1º, veda ao IBGE compartilhar os dados disponibilizados com outros entes, públicos ou privados. Nada obstante, a MP 954/2020 não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida, seja na sua transmissão, seja no seu tratamento. Limita-se a delegar a ato do presidente do IBGE o procedimento para compartilhamento dos dados, sem oferecer proteção suficiente aos relevantes direitos fundamentais em jogo. Ao não prever exigência alguma quanto a mecanismos e procedimentos para assegurar o sigilo, a higidez e, quando o caso, o anonimato dos dados compartilhados, a MP 954/2020 não satisfaz as exigências que exsurgem do texto constitucional no tocante à efetiva proteção de direitos fundamentais dos brasileiros.... A ausência de garantias de tratamento adequado e seguro dos dados compartilhados é agravada pela circunstância de que, embora aprovada, ainda não está em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), definidora dos critérios para a responsabilização dos agentes por eventuais danos ocorridos em virtude do tratamento de dados pessoais. Nesse contexto, não bastasse a coleta de dados se revelar excessiva, ao permitir que, pelo prazo de trinta dias após a decretação do fim da situação de emergência de saúde pública, os dados coletados ainda sejam utilizados para a produção estatística oficial, o art. 4º, parágrafo único, da MP 954/2020 permite a conservação dos dados pessoais, pelo ente público, por tempo manifestamente excedente ao estritamente necessário para o atendimento da sua finalidade declarada, que é a de dar suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública decorrente do Covid-19.Vencido o ministro Marco Aurélio, que não referendou a medida cautelar e manteve hígida a medida provisória...Pontuou que a medida provisória surgiu diante da dificuldade de se colher dados, devido à impossibilidade de ter-se pessoas circulando, visitando os domicílios e residências... A sociedade perde com o isolamento do IBGE, pois o levantamento de dados é necessário ao implemento de políticas públicas. Afirmou que a ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada contra ato precário e efêmero, que fica, uma vez formalizado pelo Executivo, submetido a condição resolutiva do Congresso Nacional, que tem prazo para pronunciar-se a respeito. Ao analisar a medida provisória, o Congresso Nacional aprecia sua harmonia ou não com a CF, bem como a conveniência e a oportunidade da normatização da matéria. Afastou a concepção segundo a qual existiria verdadeira conspiração por trás dessa medida provisória. Destacou que não se pode presumir o excepcional ou extravagante.

 

QUESTÃO 6

Luana Azeda era vizinha de porta de Lucrécia Amarguinha. Rivais na vida e no amor. Dia desses, o Sr. Anastácio Soneca teve mesmo que chamar a polícia. As duas estavam se atracando no meio da rua e já era madrugada. Para piorar dilapidaram e atearam fogo nos carros uma da outra. Ninguém conseguia dormir pelo barulho e cheiro de fumaça. Logo chegaram os bombeiros. Mas o ódio entre elas era intenso. Inimigas desde a infância, a coisa piorou depois que Amarguinha resolveu casar-se com o noivo de Azeda. E lá se foi a questão bater às portas da Justiça, para que o mediador e o juiz, que não são psicólogos, pudessem dar jeito na situação, já que no ódio era mesmo impossível. Contudo, Azeda azedou de vez. Não queria ver a cara de Amarguinha nem pintada com ouro e diamante, quanto mais na frente de um juiz. E chegado o dia aprazada para a audiência de conciliação e mediação não compareceu ao ato, tampouco apresentou justificativa adequada. A consequência disso, nada agradável, é que o juiz aplicou a multa por ato atentatório à dignidade da justiça, multa essa prevista no parágrafo 8º do art. 334 do CPC. Inconformada, já que umas das causas de maior sofrimento do ser humano é o bolso, Azeda judicializou a questão e impugnou tal multa por agravo de instrumento. Lado outro, Amarguinha contra argumentou aduzindo não ser esse o meio processual idôneo para a insurgência da referida multa. Qual o entendimento correto acerca do tema a luz de recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema?

A razão está mesmo com Amarguinha, ao menos processualmente falando. Instado a pronunciar-se sobre o tema o Superior Tribunal de Justiça, na lavra do Informativo 668, apreciou a questão e validou o argumento de Amarguinha, no sentido da inadequação da via eleita por Azeda. É que o rol do art. 1015 do CPC que encampa o agravo de instrumento possui natureza taxativa. Ademais, a decisão de não comparecimento a audiência não guarda a natureza jurídica de uma decisão interlocutória que verse sobre a questão de fundo do processo (mérito) e, por não demandar urgência, pode perfeitamente aguardar o momento processual da apelação para ser ventilada. Não há que se falar em dano irreparável. Para sermos fiéis ao julgado exarado pela Corte Cidadã confira o teor de sua ementa:

A decisão que aplica a multa do art. 334, §8º, do CPC, à parte que deixa de comparecer à audiência de conciliação, sem apresentar justificativa adequada, não pode ser impugnada por agravo de instrumento, não se inserindo na hipótese prevista no art. 1.015, II, do CPC. Tal decisão poderá, no futuro, ser objeto de recurso de apelação, na forma do art. 1.009, §1º, do CPC. STJ. 3ª Turma. REsp 1.762.957-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 10/03/2020 (Info 668). A decisão que aplica a multa do art. 334, §8º, do CPC, à parte que deixa de comparecer à audiência de conciliação, sem apresentar justificativa adequada, não pode ser impugnada por agravo de instrumento, não se inserindo na hipótese prevista no art. 1.015, II, do CPC. Tal decisão poderá, no futuro, ser objeto de recurso de apelação, na forma do art. 1.009, §1º, do CPC. STJ. 3ª Turma. REsp 1.762.957-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 10/03/2020 (Info 668).

QUESTÃO 7

A Constituição do Estado do Mato Grosso, através de emenda, conferiu autonomia funcional, administrativa e financeira aos Procuradores daquele Estado, inclusive, contemplando em um dos seus artigos a elaboração de proposta orçamentária pelos membros da casa. O Governador do Estado (Chefe do Poder Executivo), não assentindo com tal providência, tratou logo de questioná-la junto ao Supremo Tribunal Federal. E assim o fez através do ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade. Em linha de defesa, o Poder Legislativo valeu-se do art. 25 da Lei Maior - que preconiza que os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem. Eis em tal dispositivo a consagração do princípio da autonomia federativa, em sua faceta da auto-organização. A pergunta que não quer calar é a seguinte: A autonomia do Estado, um dos braços do Pacto Federativo poderá ser restringida por atos do Poderes Executivo e Judiciário?

A resposta afirmativa se impõe. A autonomia do Estado membro para reger-se por suas próprias normas não é absoluta.

O próprio artigo 25 da Lei Maior assim nos esclarece ao estatuir que os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e Leis que adotarem, observados os princípios da Constituição.

Veja bem. Não foi vontade do legislador constituinte estender aos procuradores dos Estados as garantias funcionais dos membros da magistratura, defensoria pública bem como do Ministério Público. Entendamos a decisão do Supremo Tribunal Federal, esposada na lavra do seu informativo 975, sob o prisma dos três sujeitos acima elencados em cotejo com o Procurador do Estado.

O magistrado goza de independência funcional para que assim reste preservada a sua imparcialidade. O Ministério Público e a Defensoria Pública gozam de inamovibilidade e independência funcional, para exercerem suas funções, igualmente, com isenções. Não guardam nenhum dos três sujeitos acima arrolados subordinação hierárquica junto ao Chefe do Executivo.

Ademais, as atribuições dos três sujeitos são distintas: Ao magistrado cabe dizer a lei ao caso concreto através de atos jurisdicionais. O MP cabe a função precípua de fiscal do ordenamento jurídico e a Defensoria compete a defesa dos hipossuficientes técnicos, jurídicos, financeiros e informacionais. Já o Procurador do Estado possui a função precípua de prestar consultoria jurídica ao órgão pelo qual é subordinado. É, pois, sujeito parcial, pois vinculado de forma hierárquica ao chefe do Poder Executivo, sendo parte de sua estrutura orgânica, já que órgão superior daquela instituição. Essa, a sua natureza jurídica.

Logo, os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições que adotarem, não de forma livre, mas observados os princípios da Constituição da República, dentre eles, a simetria. No caso concreto por nós idealizado houve clara violação ao princípio da simetria, pois, no caso, não houve omissão constitucional ao não se dar o mesmo tratamento dos juízes, promotores e defensores públicos ao Procuradores do Estado, e, sim, silêncio eloquente.

Para sermos fiéis ao julgado exarado pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema, reproduzimos trecho da decisão. Confira o leitor:

Norma estadual não pode conferir autonomia para a PGE As Procuradorias de Estado, por integrarem os respectivos Poderes Executivos, não gozam de autonomia funcional, administrativa ou financeira, uma vez que a administração direta é una e não comporta a criação de distinções entre órgãos em hipóteses não contempladas explícita ou implicitamente pela Constituição Federal. STF. Plenário. ADI 5029, Rel. Luiz Fux, julgado em 15/04/2020. Norma estadual não pode conferir inamovibilidade aos Procuradores do Estado A garantia da inamovibilidade conferida pela Constituição Federal aos magistrados, aos membros do Ministério Público e aos membros da Defensoria Pública (arts. 93, VIII; 95, II; 128, § 5º, b; e 134, parágrafo único) não pode ser estendida aos procuradores de estado. STF. Plenário. ADI 5029, Rel. Luiz Fux, julgado em 15/04/2020. Princípios e garantias funcionais do MP e da Defensoria não podem ser estendidas à PGE Os princípios institucionais e as prerrogativas funcionais do Ministério Público e da Defensoria Pública não podem ser estendidos às Procuradorias de Estado, porquanto as atribuições dos procuradores de estado – sujeitos que estão à hierarquia administrativa – não guardam pertinência com as funções conferidas aos membros daquelas outras instituições. STF. Plenário. ADI 5029, Rel. Luiz Fux, julgado em 15/04/2020. Norma estadual não pode conferir independência funcional aos Procuradores do Estado A Procuradoria-Geral do Estado é o órgão constitucional e permanente ao qual se confiou o exercício da advocacia (representação judicial e consultoria jurídica) do Estado-membro (art. 132 da CF/88). A parcialidade é inerente às suas funções, sendo, por isso, inadequado cogitar-se independência funcional, nos moldes da Magistratura, do Ministério Público ou da Defensoria Pública (art. 95, II; art. 128, § 5º, I, b; e art. 134, § 1º, da CF/88). STF. Plenário. ADI 1246, Rel. Roberto Barroso, julgado em 11/04/2019

Deixo aqui registrado ao leitor uma observação. No caso concreto por nós idealizado, a ampliação de garantias conferidas ao Procurador do Estado foram assim veiculadas por norma da Constituição do Estado do Mato Grosso. No caso objeto de julgamento pelo STF tratou-se de uma lei complementar. Embora o veículo normativo tenha sido distinto a raciocínio a ser aplicado é o mesmo. A ordem dos fatores, aqui, por si só, não teve o condão de alterar o produto.

            Questão 8

Joaquim Açafrão e Manuel Pimenta tinham em comum o fato de serem mineiros, militares e primos. Nunca se deram bem, desde a mais tenra infância, mas a família insistia em uni-los, afinal tinham laços de sangue e seriam a continuação da estirpe. Era época de férias e, como de costume, os tios organizaram uma excursão para uma daquelas praias aconchegantes do litoral paulista. Fretaram um ônibus e foram todos muito animados para mais um verão em família. Mas como tudo que é bom dura pouco logo começaram a surgir as rixas e rivalidades entre os primos. O motivo da discórdia foi mesmo o churrasquinho de camarão. Não se sabe se foi o camarão, o excesso de sol ou mesmo a mistura de diversos petiscos que fizeram mal, mas para Pimenta, a causa de seu problema estomacal era mesmo o péssimo conselho do primo em indicar e até pagar para ele o churrasquinho de camarão. Discutiram até o sol raiar. Ninguém conseguia apartá-los e, num dado momento, Açafrão resolveu dar a última palavra: sacou a arma da corporação e deu um tiro certeiro no coração do primo Pimenta, que veio a falecer em seguida. Açafrão foi preso em flagrante e denunciado por homicídio, na Justiça Comum. A defesa impetrou habeas corpus alegando a incompetência do Tribunal do Júri para julgar Açafrão, pontuando a qualidade de militar do acusado e da vítima, e de ter o crime sido cometido com arma da corporação. A quem compete o processo e julgamento de Açafrão?

Compete a Justiça comum (Tribunal do Júri) o julgamento de homicídio praticado por militar contra outro quando ambos estejam fora do serviço ou da função no momento do crime. Esse foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça anunciado no informativo 667. O Código Penal Militar não exclui o homicídio de sua apreciação, mas desde que crime tenha sido praticado quando o militar estivesse em atividade, o que não se revela nos casos em que o policial militar encontra-se de folga, ou mesmo de férias em contexto totalmente discrepante com a função militar. Logo, não houve nexo causal com a atividade militar desempenhada pelo acusado. O fato de ter se valido de arma da corporação, por si só, não faz presumir que ele tivesse se locupletado de sua função para a prática do crime. O instrumento do crime não se confunde com o vínculo funcional de Açafrão.

Logo, não houve vínculo direto com o exercício da atividade militar. Para sermos fiéis ao julgado reproduzimos trecho do julgado emitido pela Corte Cidadã. Confira o leitor:

Compete à Justiça comum (Tribunal do Júri) o julgamento de homicídio praticado por militar contra outro quando ambos estejam fora do serviço ou da função no momento do crime. STJ. 3ª Seção. CC 170.201-PI, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11/03/2020 (Info 667).

 

            QUESTÃO 9

Alípio Alecrim e Bonifácio Boldo eram irmãos, filhos do mesmo pai, da mesma mãe, com a mesma criação, mas personalidade completamente diferente. Não fosse a semelhança física e o registro na certidão de nascimento ninguém acreditaria mesmo no parentesco. Em comum, também existia o fato de ambos serem empresários no ramo de alimentos, cada qual com a sua lanchonete. Enquanto Alecrim distribuía bondade e comida da lanchonete para a igreja fazer doações, Boldo era sovina e aproveitava os restos de comida servindo-a aos clientes, pouco importando se estava dentro do prazo de validade. Fato é que a intenção de Alecrim era boa, mas o empresário corria grandes riscos, pois, se algum fiel da igreja tivesse qualquer indisposição estomacal não havia disposição normativa que o protegesse da doação. E, como dizia Boldo, “de boas ações o inferno está cheio”. Pois bem. Em 24 de junho de 2020 a situação de Alecrim mudou de figura. É que, agora, as doações de alimentos por bares, restaurantes, hospitais e lanchonetes foram regulamentadas pela Lei 14.016/20. A regulamentação do tema veio em boa hora, já que toneladas de sobras de alimentos eram jogadas no lixo e viravam chorume ( líquido poluente na terra), enquanto a fome só crescia diariamente no país. Contudo, Boldo, uma vez avarento, avarento sempre! Com a nova lei, ele simplesmente mudou o destinatário dos restos de comida estragada, agora, ao invés de repassá-las aos clientes passou a doá-las. Pergunta-se: Em qual tipo penal se enquadra a conduta de boldo? E se Boldo, por engano, trocasse o marmitex vencido pelo marmitex dentro do prazo de validade?

Resposta: A doação de comida estragada configura o dolo específico (elemento subjetivo do injusto) de causar dano a saúde de outrem. A conduta de Boldo amolda-se ao tipo do art. 7º, IX da Lei 8.137/90. Contudo, se, por descuido, trocar um marmitex com alimento saudável por um marmitex de alimento estragado, a sua conduta será atípica. Isso porque o artigo 4º da Lei 14.016/20 só previu a conduta dolosa, banindo a culpa, seja ele média, leve ou grave. Não se sabe se esse foi um descuido do legislador ou mesmo o fato de a doação consistir em ato de benemerência, fato é que trata-se de um silêncio eloquente e, para tanto, não compete ao intérprete estender o sentido da norma, sob pena de analogia in malam partem e, por via de consequência, burla ao princípio da reserva legal.

Questão 10

É cedido que uma das maiores preocupações do Brasil e quiçá do mundo é a corrupção. Programas de compliance são adotados por empresas do mundo inteiro e a preocupação circula tanto no setor privado quanto no setor público. Alguns doutrinadores, inclusive, advogam a tese de que o combate a corrupção seria um mandado de criminalização implícito em nossa Constituição da República. Sensível a tal problema mundial, o Estado do Pernambuco trouxe em sua Constituição Estadual a previsão de que atos de corrupção serviriam de causa de intervenção direta dos Estados nos Municípios, bem como alargou a competência ao Tribunais de Contas no requerimento e decreto da respectiva intervenção. O Procurador Geral da República ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal federal argumentando que a Constituição de Pernambuco teria criado uma nova hipótese de permissão para a ação interventiva que não teria sido contemplada pelo legislador constituinte. Em defesa, o Estado de Pernambuco defendeu a autonomia de auto-organização para criarem as suas Constituições. Seria essa nova hipótese de intervenção uma burla ao pacto federativo?

A resposta afirmativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema o Supremo Tribunal Federal analisou a questão na lavra do informativo 973. A ação interventiva visa resguardar a federação de circunstâncias excepcionais e a corrupção, infelizmente, não é uma situação excepcional, mas corriqueira em nossa realidade brasileira. A corrupção, por ela mesma, não configura situação crítica, a cujo combate visa resguardar ameaça ao equilíbrio federativo. Seu combate enaltece a moralidade, probidade, princípios constitucionais, mas não a Federação em si mesma. Ademais, as hipóteses de intervenção estão previstas em um rol taxativo na Constituição da República (art. 35) e nelas não há a hipótese de corrupção, menos ainda a figura do personagem do Tribunal de Contas como legitimado para a sua decretação.

Para sermos fiéis ao leitor, colacionamos trecho do julgado exarado pela Suprema Corte. Confira:

A Constituição Estadual não pode trazer hipóteses de intervenção estadual diferentes daquelas que são previstas no art. 35 da Constituição Federal. As hipóteses de intervenção estadual previstas no art. 35 da CF/88 são taxativas. Caso concreto: STF julgou inconstitucional dispositivo da Constituição de Pernambuco que previa que o Estado-membro poderia intervir nos Municípios caso ali ocorressem atos de corrupção e improbidade administrativa. STF. Plenário. ADI 2917, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 27/03/2020. Viola a Constituição Federal a previsão contida na Constituição Estadual atribuindo aos Tribunais de Contas a competência para requerer ou decretar intervenção em Município. Essa previsão não encontra amparo nos arts. 34 e 36 da CF/88. STF. Plenário. ADI 3029, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 27/03/2020

            QUESTÃO 11

Beomiro Espeto foi mesmo condenado por estuprar Dona Maria do Rego Grande, sua vizinha de prédio contíguo. As más línguas diziam que ela o provocava. Já ela dizia que ele a espiava no banho pela janela de seu apartamento; mas ninguém soube, ao certo, qual a versão verdadeira e, como a verdade processual é a verdade dos autos, Beomiro foi mesmo parar no xilindró. Por lá fez novas amizades, boas e ruins. Desenvolveu o seu lado espiritual, mas, a causa deflagradora da maior angústia que ele depositava no peito eram os banhos frios, que, para ele e os outros, significavam uma tortura diária. Vozes contrárias até argumentaram que a água fria fazia bem para a circulação sanguínea, mas os resfriados do Espeto eram constantes. Verdadeiro mal do encarceramento, que se proliferava na cela e se agravava em tempos de pandemia de coronavírus. Indignada com a situação, a Defensoria Pública ajuizou uma ação civil pública requerendo ao Estado de São Paulo que providenciasse banho quente aos presos, como forma de resguardar a dignidade deles. Era o mínimo existencial que gritava por de trás das grades. A tutela provisória deferida em primeira instância foi suspensa no Tribunal, ao argumento de que implementar banho quente nos presídios comprometeria, em última análise, o princípio da reserva do possível, com dispêndios financeiros de alta monta para a Fazenda Estadual, o que acarretaria, em certa medida, em grave lesão aos cofres públicos. Faltariam verbas públicas para a alimentação e higiene dos próprios detentos. Diante de tal cenário, indaga-se: O princípio da reserva do possível, no caso concreto, terá primazia sobre o mínimo existencial?

A resposta negativa se impõe. No caso concreto, o Superior Tribunal de Justiça, na lavra de seu informativo 666 dissertou não sobre a reserva do possível, mas sobre a reserva do impossível e, assim, definiu a situação como manifesto interesse público reverso. A Corte Cidadã inspirou-se nas Regras de Mandela, regras mínimas para o tratamento de reclusos, promulgadas pelas Nações Unidas e, num diálogo entre normas constitucionais internas e mandamentos do Direito Internacional atinente aos Direitos Humanos (Transconstitucionalismo), implementou, no caso em análise, a primazia dos direitos fundamentais, ao considerar que a dignidade é ínsita ao homem. Encarcerado ou não, é inadmissível que esse seja tratado como animal. O chuveiro quente é, pois, a consequência prática do núcleo duro. Todo direito fundamental admite relativizações, mas desde que, preservada a intocabilidade da essência. Para sermos fiéis ao julgado proferido pela Corte Cidadã reproduzimos ao leitor trecho da decisão. Confira:

Garantia de banho aquecido aos presos. Direito humano fundamental. Alegação de discricionariedade administrativa e de incidência da reserva do possível. Inadmissibilidade. Manifesto interesse público reverso. Dignidade da pessoa humana. Ação civil pública que visa obrigar Estado a disponibilizar, em suas unidades prisionais, equipamentos para banho dos presos em temperatura adequada ("chuveiro quente").

Trata-se de caso peculiar, por sua negativa ferir aspectos existenciais da textura íntima de direitos humanos substantivos. Primeiro, porque se refere à dignidade da pessoa humana, naquilo que concerne à integridade física e mental a todos garantida. Segundo, porque versa sobre obrigação inafastável e imprescritível do Estado de tratar prisioneiros como pessoas, e não como animais. Terceiro, porque o encarceramento configura pena de restrição do direito de liberdade, e não salvo-conduto para a aplicação de sanções extralegais e extrajudiciais, diretas ou indiretas. Quarto, porque, em presídios e lugares similares de confinamento, ampliam-se os deveres estatais de proteção da saúde pública e de exercício de medidas de assepsia pessoal e do ambiente, em razão do risco agravado de enfermidades, consequência da natureza fechada dos estabelecimentos, propícia à disseminação de patologias.

Ofende os alicerces do sistema democrático de prestação jurisdicional admitir que decisão judicial, relacionada à essência dos direitos humanos fundamentais, não possa ser examinada pelo STJ sob o argumento de se tratar de juízo político. Quando estão em jogo aspectos mais elementares da dignidade da pessoa humana (um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil, expressamente enunciado na Constituição, logo em seu art. 1º) impossível subjugar direitos indisponíveis a critérios outros que não sejam os constitucionais e legais.

Ademais, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, promulgadas pelas Nações Unidas (Regras de Mandela), dispõem que "Devem ser fornecidas instalações adequadas para banho", exigindo-se que seja "na temperatura apropriada ao clima" (Regra 16). Irrelevante, por óbvio, que o texto não faça referência expressa a "banho quente".

Assim, assegurar a dignidade de presos sob custódia do Estado dispara a aplicação não do princípio da reserva do possível, mas do aforismo da reserva do impossível (= reserva de intocabilidade da essência), ou seja, manifesto interesse público reverso, considerando-se que a matéria se inclui no núcleo duro dos direitos humanos fundamentais, expressados em deveres constitucionais e legais indisponíveis, daí marcados pela vedação de descumprimento estatal, seja por ação, seja por omissão. Consequentemente, impróprio retirar do controle do Judiciário tais violações gravíssimas, pois equivaleria a afastar o juiz de julgar ataques diretos ou indiretos aos pilares centrais do ordenamento jurídico.

            QUESTÃO 12

O Condomínio Maravilhoso do Oeste é condomínio famoso na praia do Forte. Contudo, de uns tempos para cá, desde que o jornal O Grilo Fanhoso publicou umas orgias, envolvendo autoridades públicas que frequentavam moradoras do local, ninguém mais se interessou por locar ou adquirir unidades de apartamentos ali. Vivia as moscas, mesmo na alta temporada. Sentindo-se prejudicado com o falatório jornalístico o Condomínio Maravilhoso do Oeste judicializou a questão. Propôs demanda compensatória por danos morais em face do Jornal o Grilo Fanhoso. Em contestação, Fanhoso aduziu que o condomínio não era detentor de honra objetiva e, sim, as moradoras do local, que nada falaram. E, se nada falaram sobre o assunto, quem cala consente. Sabendo-se que aquele que comete um ato ilícito é obrigado a indenizar, estaria o jornal isento de qualquer responsabilidade, ainda que comprovadas serem as notícias inverídicas?

A resposta afirmativa se impõe. Tidos como pessoas formais, o Condomínio não possui personalidade jurídica, não fica triste, deprimido, de mal com a vida. Não tem, menos ainda, reputação a zelar, já que a honra objetiva é atributo da personalidade. É ente despersonalizado. Entre o condomínio e os condôminos não há relação jurídica, mas tão só gestão patrimonial do direito que é exercido sobre a coisa, de modo que não há que se falar em affectio societatis. Reduz-se a uma simples massa patrimonial. Contudo, nada impede que as moradoras do local, sentindo-se prejudicadas em sua imagem, comprovadas as inveracidades dos fatos, ingressem em juízo pleiteando a compensação pelos prejuízos sofridos, quanto mais comprovando-se que, como proprietárias, sofreram a desvalorização imobiliária decorrente da má língua da imprensa. O acesso à justiça, para elas, é franqueado de forma ampla. Para sermos fiéis ao julgado preferido pela Corte Cidadão reproduzimos ao leitor trecho do julgado analisado pela Corte no bojo do seu informativo 665. Confira o leitor:

Os condomínios são entes despersonalizados, pois não são titulares das unidades autônomas, tampouco das partes comuns, além de não haver, entre os condôminos, a affectio societatis, tendo em vista a ausência de intenção dos condôminos de estabelecerem, entre si, uma relação jurídica, sendo o vínculo entre eles decorrente do direito exercido sobre a coisa e que é necessário à administração da propriedade comum. Caracterizado o condomínio como uma massa patrimonial, não há como reconhecer que seja ele próprio dotado de honra objetiva. Qualquer ofensa ao conceito (reputação) que possui perante a comunidade representa, em verdade, uma ofensa individualmente dirigida a cada um dos condôminos, pois quem goza de reputação são os condôminos e não o condomínio, ainda que o ato lesivo seja a este endereçado. Diferentemente do que ocorre com as pessoas jurídicas, qualquer repercussão econômica negativa será suportada, ao fim e ao cabo, pelos próprios condôminos, a quem incumbe contribuir para todas as despesas condominiais, e/ou pelos respectivos proprietários, no caso de eventual desvalorização dos imóveis no mercado imobiliário. Assim, o condomínio, por ser uma massa patrimonial, não possui honra objetiva e não pode sofrer dano moral. STJ. 3ª Turma. REsp 1.736.593-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 11/02/2020 (Info 665). Os condomínios são entes despersonalizados, pois não são titulares das unidades autônomas, tampouco das partes comuns, além de não haver, entre os condôminos, a affectio societatis, tendo em vista a ausência de intenção dos condôminos de estabelecerem, entre si, uma relação jurídica, sendo o vínculo entre eles decorrente do direito exercido sobre a coisa e que é necessário à administração da propriedade comum. Caracterizado o condomínio como uma massa patrimonial, não há como reconhecer que seja ele próprio dotado de honra objetiva. Qualquer ofensa ao conceito (reputação) que possui perante a comunidade representa, em verdade, uma ofensa individualmente dirigida a cada um dos condôminos, pois quem goza de reputação são os condôminos e não o condomínio, ainda que o ato lesivo seja a este endereçado. Diferentemente do que ocorre com as pessoas jurídicas, qualquer repercussão econômica negativa será suportada, ao fim e ao cabo, pelos próprios condôminos, a quem incumbe contribuir para todas as despesas condominiais, e/ou pelos respectivos proprietários, no caso de eventual desvalorização dos imóveis no mercado imobiliário. Assim, o condomínio, por ser uma massa patrimonial, não possui honra objetiva e não pode sofrer dano moral. STJ. 3ª Turma. REsp 1.736.593-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 11/02/2020 (Info 665).

            QUESTÃO 13

Maria Camomila, Maria Erva Doce e Maria Alecrim eram irmãs trigêmeas. Sempre muito unidas, desde a mais tenra infância, faziam de um tudo juntas. Erva Doce era a mais linda e ciumenta de todas. Amava igualmente as duas irmãs, mas achava que sempre era preterida por elas, e que, se no número três, um sobra, ela sobrava. Fato é que não se casaram e viveram esse amor fraternal, a três, por toda a vida. Ao longo dos anos Erva Doce passou a sofrer de esquizofrenia paranóica e, no ano de 2018, um fatídico acidente de veículo ceifou a sua vida. Alecrim renunciou a herança da irmã. Seis meses após o ato de renúncia, veio a descobrir que Erva Doce havia vendido “ a preço de banana” um dos seus apartamentos para Camomila, que segundo Alecrim, teria se aproveitado a fragilidade mental da irmã. Indignada, Alecrim judicializou a questão pleiteando, em juízo, a nulidade do negócio jurídico celebrado entre as irmãs no passado. Considerando a proteção pos mortem dos direitos da personalidade e o dano moral por ricochete, Alecrim poderia demandar, em juízo para a defesa dos direitos da irmã Camomila, como legitimada extraordinária?

A resposta negativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, na lavra de seu Informativo 664 nos ensinou que o proveito econômico dita a legitimidade ad causam de Alecrim. Como houve renúncia da herança, ainda que anulada a venda, Alecrim ficaria “a ver navios”, já que quem receberia o bem seria sua outra irmã, titular do negócio jurídico ora supostamente anulado. Não se discutiu, no caso, nenhuma violação a honra ou imagem de Erva doce. Caso houvesse agressão a tais bens, Alecrim deteria legitimidade para ingressar em juízo como legitimada ordinária, pois detentora de direito próprio, qual seja, o respeito a memória de sua irmã. Não foi esse o caso.  Para sermos fiéis ao que decidiu a Corte Cidadã reproduzimos a ementa do julgado, por ela analisado. Confira o leitor:

Sucessão. Renúncia à herança. Ato formal e solene. Escritura pública. Ato não sujeito à condição ou termo. Requerimento de anulação de negócio jurídico pelos renunciantes. Impossibilidade. Sucessão. Renúncia à herança. Ato formal e solene. Escritura pública. Ato não sujeito à condição ou termo. Requerimento de anulação de negócio jurídico pelos renunciantes. Impossibilidade. REsp 1.433.650-GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 19/11/2019.

QUESTÃO 14

Alminda Alface era esposa de Adroaldo Cenoura. Gozavam de grande prestígio na comunidade local, pois o tráfico financiava a escola e o lazer na região, sendo o seu marido um dos chefes do narcotráfico e a cabeça pensante da organização criminosa. Alminda não conheceu outra realidade. Desde criança nutria um sentimento de gratidão gigantesco pelo sogro, o cabeça aposentado do tráfico, pois, graças a ele, seu pai pôde realizar uma cirurgia de emergência, o que o manteve vivo até os dias atuais. O Estado pouco agia, o traficante tudo agia. No vai e vem da co-culpabilidade os valores de certo e errado foram deturpados. Como personagem da cena do crime, Alminda era figurante. Apenas alocava a mercadoria em casa, a espera dos compradores. Sabia do conteúdo e ajudava no tráfico, mas não tinha qualquer poder decisório no negócio. Certa feita, por denúncia anônima, a polícia deu uma batida no morro e flagrou Alminda, justo no instante em que estava na venda, entregando as mercadorias do marido a um consumidor da droga. Presa em flagrante, embora a quantidade da substância encontrada tenha sido pequena, Alminda teve negado o benefício do privilégio no tráfico (Art. 33  § 4º da Lei11.343/06), pois aquele não era o primeiro inquérito policial a que respondia e, entendeu o magistrado, que a existência de outro inquérito, anterior ao atual, impedia,  por denotar a convicção de que Alminda se dedicava a atividades criminosas. Irresignada, a Defensoria Pública impetra habeas corpus, ao argumento de que a convicção de dedicação em atividades criminosas, por conta de inquérito anterior, em andamento , viola o princípio da presunção de não culpabilidade. Pergunta-se: o trânsito em julgado de uma condenação seria pré-requisito para a aferição de dedicação em atividades criminosas da acusada?

A resposta afirmativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre a questão, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do Informativo 967, em verdadeira reviravolta ao posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, nos revelou que a simples existência de inquéritos policiais e ações penais em andamento, por si só, não revelam que a acusada possui maus antecedentes para fins de dosimetria da pena. É, pois, o trânsito em julgado o aspecto substancial do princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade. Para sermos fiéis ao julgado proferido pela Suprema Corte confira o leitor trechos do julgado:

Não se pode negar a aplicação da causa de diminuição pelo tráfico privilegiado, prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, com fundamento no fato de o réu responder a inquéritos policiais ou processos criminais em andamento, mesmo que estejam em fase recursal, sob pena de violação ao art. 5º, LIV (princípio da presunção de não culpabilidade). STF. 1ª Turma. HC 173806/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 18/2/2020 (Info 967). STF. 2ª Turma. HC 144309 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 19/11/2018.  O  colegiado entendeu, com base no decidido no julgamento do RE 591.054, submetido à sistemática de repercussão geral (Tema 129), que a existência de inquéritos policiais e processos criminais sem trânsito em julgado não podem ser considerados como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena, de modo que o fato de a paciente ser ré em outra ação penal, ainda em curso, não constitui fundamento idôneo para afastar a aplicação da causa de diminuição da pena.  colegiado entendeu, com base no decidido no julgamento do RE 591.054, submetido à sistemática de repercussão geral (Tema 129), que a existência de inquéritos policiais e processos criminais sem trânsito em julgado não podem ser considerados como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena, de modo que o fato de a paciente ser ré em outra ação penal, ainda em curso, não constitui fundamento idôneo para afastar a aplicação da causa de diminuição da pena. Grifos nossos!

QUESTÃO 15

Ricardo Beterraba, ressentido com a demissão imotivada do ex patrão, o Sr. Juarez Mandioca resolveu, por conta própria, danificar o veículo do ex empregador. Foram muitos anos de labuta e pouco reconhecimento, segundo ele... A ideia era mesmo destruir o carro daquele que havia lhe destruído o sossego e a paz. Todavia, no momento em que colocou o seu plano em ação, e passou a riscar o veículo, Beterraba foi surpreendido pelo dono que, de imediato, chamou a autoridade policial, e, após a lavratura do termo circunstanciado Beterraba fora encaminhado aos Juizados Especiais Criminais. Contudo, antes da celebração da transação penal Beterraba já havia impetrado um habeas corpus, alegando no write possíveis violações a direitos fundamentais seus. Já em uma fase posterior, em juízo, o ex empregado aceitou o acordo de transação penal. A pergunta que não quer calar é a seguinte: Com o acordo de transação penal o habeas corpus perdeu o objeto?

A resposta negativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, na lavra do Informativo 964, em linha de direção oposta ao que vinha decidindo o Superior Tribunal de Justiça, examinou a questão. A aceitação de acordo de transação penal não é requisito idôneo a afastar o exame do habeas corpus. O controle judicial tem por finalidade averiguar a legitimidade da persecução penal. A transação penal não pode atravancar a garantia constitucional de acesso à justiça, sobretudo quando estão em jogo a ponderação de direitos fundamentais. A voluntariedade na aceitação do acordo de transação penal não pode ser interpretada como renúncia a proteção de direitos fundamentais. Para sermos fiéis ao julgado confira o leitor trecho do julgado exarado pela Suprema Corte:

A concessão do benefício da transação penal impede a impetração de habeas corpus em que se busca o trancamento da ação penal? Com a celebração da transação penal, o habeas corpus que estava pendente fica prejudicado ou o TJ deverá julgá-lo mesmo assim? • STJ: SIM. Fica prejudicado. A concessão do benefício da transação penal impede a impetração de habeas corpus em que se busca o trancamento da ação penal. STJ. 6ª Turma. HC 495.148-DF, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 24/09/2019 (Info 657). STF: NÃO. Não impede e o TJ deverá julgar o mérito do habeas corpus. A realização de acordo de transação penal não enseja a perda de objeto de habeas corpus anteriormente impetrado. Informativo 964-STF. A aceitação do acordo de transação penal não impede o exame de habeas corpus para questionar a legitimidade da persecução penal. Embora o sistema negocial possa trazer aprimoramentos positivos em casos de delitos de menor gravidade, a barganha no processo penal pode levar a riscos consideráveis aos direitos fundamentais do acusado. Assim, o controle judicial é fundamental para a proteção efetiva dos direitos fundamentais do imputado e para evitar possíveis abusos que comprometam a decisão voluntária de aceitar a transação. Não há qualquer disposição em lei que imponha a desistência de recursos ou ações em andamento ou determine a renúncia ao direito de acesso à Justiça. STF. 2ª Turma. HC 176785/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 17/12/2019 (Info 964).

QUESTÃO 16

                Jerônimo    Glamour desde muito criança era amante dos livros. Alguns anos após cursar a faculdade de direito foi aprovado no concurso para promotor de justiça. Exercendo a função, por alguns anos, Jerônimo passou a exorbitar de suas atribuições. Fato é que ficou indignado ao tomar conhecimento de que a fila de adoções estava sendo desrespeitada pelo juízo e, ao invés, de comunicar a suposta ilegalidade ao Corregedor Geral ou mesmo ao Presidente do Tribunal de Justiça em que vinculado o magistrado, simplesmente, requisitou à autoridade policial a instauração de inquérito contra o juiz, além de instaurar um procedimento administrativo com o mesmo fim, qual seja, punir a suposta ilegalidade. E, aqui, uma singela observação: Ser fiscal do ordenamento jurídico não significa ser salvador do mundo, já que a apuração de tais fatos não lhe competia, e, sim, àqueles. O resultado de tal proceder equivocado consubstanciou-se na tipificação do crime de denunciação caluniosa. O Tribunal de Justiça condenou Glamour. Logo após foi ajuizada uma ação civil pela perda do cargo. O promotor foi colocado em disponibilidade e o Tribunal de Justiça remeteu os autos à primeira instância, sob a alegação de ausência de prerrogativa funcional. Afigura-se correto tal proceder?

                A resposta negativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, na lavra de seu informativo 662 entendeu que a mera colocação do membro do ministério público em disponibilidade, por si só, não afasta a prerrogativa de foro. Não há que se confundir a ação civil por perda de cargo por ato que não configura improbidade administrativa com os casos de improbidade que ensejam a perda de cargo. A denunciação caluniosa constitui causa de pedir distinta dos ilícitos que consubstanciam a improbidade administrativa, julgada em primeira instância. Não há que se confundir alhos com bugalhos! Para sermos fiéis ao julgado emitido pela Corte Cidadão confira o leitor trecho da decisão:

 

Membro do Ministério Público estadual. Ação Civil para perda do cargo. Causa de pedir não vinculada a ilícito capitulado na Lei n. 8.429/1992. Competência. Tribunal de Justiça. Art. 38, § 2º, da Lei n. 8.625/1993.

 

A questão central ora discutida está relacionada à competência para processar e julgar a Ação Civil Pública para perda do cargo de Promotor de Justiça, o que exige contemplar a força normativa do § 2º do art. 38 da Lei n. 8.625/1993, que prescreve: "a ação civil para a decretação da perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de Procuradores, na forma da Lei Orgânica". No caso analisado, mesmo tendo conhecimento de que a ação proposta pelo Parquet destina-se a decretar a perda do cargo público de Promotor de Justiça, adotou o Tribunal o entendimento atual e os precedentes jurisprudenciais do STJ e do STF que atestam a inexistência de foro privilegiado nas Ações Civis Públicas para apuração de ato de improbidade administrativa. No entanto, há de se fazer um distinguishing do caso concreto em relação ao posicionamento sedimentado no STJ e no STF acerca da competência do juízo monocrático para o processamento e julgamento das Ações Civis Públicas por ato de improbidade administrativa, afastando o "foro privilegiado ou especial" das autoridades envolvidas. É que a causa de pedir da ação ora apreciada não está vinculada a ilícito capitulado na Lei n. 8.429/1992, que disciplina as sanções aplicáveis aos atos de improbidade administrativa, mas a infração disciplinar atribuível a Promotor de Justiça no exercício da função pública, estando este atualmente em disponibilidade. Ademais, o STJ possui precedente no sentido de que "a Ação Civil com foro especial não se confunde com a ação civil pública de improbidade administrativa, regida pela Lei n. 8.429/1992, que não prevê tal prerrogativa". Nessa linha: REsp 1.627.076/SP, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 14/8/2018; REsp 1.737.906/SP, Relatora Ministra Regina Helena Costa, DJ 24/8/2018. Conclui-se, portanto, que a competência para processar e julgar a ação de perda de cargo de promotor de justiça é do Tribunal de Justiça local.

            

                QUESTÃO 17

                Aureliano Bravura, capixaba, policial civil do Estado do Espírito Santo estava acabrunhado, pois, apaixonado por Lucrécia do Recato e o namoro não ia para frente. É que a moça era mineira. Morava lá pelas bandas do sul de Minas e, não fosse ela estar visitando o rapaz quinzenalmente nas terras capixabas, eles nem se veriam. A questão é que Aureliano colocava a lei acima do amor. E o Estatuto dos Policiais Civis do Estado do Espírito Santo (Lei Estadual 3.400/41) estatuiu que as autoridades policiais são obrigadas a residirem no município em que atuam e não podem ausentar-se dele sem autorização do superior. E o superior de Bravura era homem carrancudo, rude e de poucas palavras. Pessoa pouco acessível. Estava mesmo Bravura confinado aos limites geográficos e ao humor de seu superior, fazendo esse tabula rasa ao seu direito de ir e vir. Por ser a lei estadual anterior a Constituição da República e afetar o direito fundamental de toda uma categoria de policiais civis do Estado, a questão veio bater às portas do Supremo Tribunal Federal, através da arguição de preceito fundamental 90. Pergunta-se: a imposição de residência do policial civil no município em que presta serviços bem como a proibição de ausentarem dele sem autorização de seu superior são compatíveis com a Constituição da República?

                Resposta: São parcialmente compatíveis com a Lei Maior. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, na lavra do Informativo 977 no ensinou o seguinte: Uma coisa é a imposição de residência do policial no município em que exerce as suas funções, outra coisa é a proibição de ausentar-se do município sem a benção do superior. Essa imposição de moradia no local foi entendida pelo legislador constituinte originário como razoável. E, embora não houvesse previsão expressa no que tange aos policiais civis, houve regra semelhante no que toca aos magistrados (art. 93, IX da CR/88). Aplica-se o mesmo raciocínio aos policiais civis, visto que ostentam a natureza jurídica de servidores públicos. Não há, pois, vulneração da garantia fundamental de liberdade de locomoção em se estabelecer a moradia no local de trabalho. Contudo, a submissão a autorização do superior hierárquico para a simples saída do munícipio implica em grave medida restritiva de sua liberdade de locomoção e, pior, sem o preenchimento dos pressupostos de admissibilidade de uma medida cautelar penal. A nosso sentir, é medida desarrazoada que afronta o devido processo legal em seu aspecto substancial.

                Para   sermos fiéis ao julgado exarado pela Suprema Corte confira o leitor trecho da decisão:

A regra que estabelece a necessidade de residência do servidor no município em que exerce suas funções é compatível com a Constituição de 1988, a qual já prevê obrigação semelhante para magistrados, nos termos do seu art. 93, VII. Por outro lado, viola a Constituição a lei estadual que proíba a saída do servidor do Município sede da unidade em que atua sem autorização do superior hierárquico. Essa previsão configura grave violação da liberdade fundamental de locomoção (art. 5º, XV, da CF/88) e do devido processo legal (art. 5º, LIV). STF. Plenário. ADPF 90, Rel. Luiz Fux, julgado em 03/04/2020 (Info 977).

               

                QUESTÃO 18 (PACOTE ANTICRIME)

 

                Juca Canhão fez do roubo profissão. Achava bonito publicar nas redes sociais o luxo que o crime lhe proporcionava. Mas fato é que no último roubo “deu ruim”. Não foi a vítima, mas sim, ele, que perdeu a sua liberdade. Preso em flagrante, da unidade prisional em que estava, ameaçou uma testemunha do crime pelo celular que ganhou, como recheio do bolo levado por sua esposa. Não é demais dizer que, após tal fato, a sua prisão em flagrante foi convertida em preventiva. Ultrapassado o lapso temporal de sessenta dias preso, por sorte ou azar, a testemunha ameaçada por ele veio a falecer, em virtude da pandemia do coronavírus. No nonagésimo primeiro dia, a defesa de Juca impetrou um habeas corpus sustentando que com a morte da testemunha não mais se justificaria a prisão preventiva de Juca, sem motivação idônea que a justificasse após o prazo de noventa dias. Assiste razão a defesa quanto a ilegalidade da prisão?

                A resposta afirmativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, na lavra do Informativo 968, o Supremo Tribunal Federal examinou a questão a luz do Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019). Com a nova lei, que alterou o artigo 316 parágrafo único do Código de Processo Penal, a necessidade da prisão preventiva deverá ser reavaliada a cada noventa dias pelo órgão emissor da decisão, que deverá fazer uma análise motivada acerca da manutenção ou revogação desta, já que há que se demonstrar fatos concretos e atuais que justifiquem tal medida extrema de cerceamento da liberdade de locomoção do preso. Tal decisão fundamentada é respeito ao Estado Democrático de Direito e ao direito fundamental de locomoção do indivíduo. É certo que, depois da vida, a liberdade é o bem mais precioso que possuímos. No caso hipotético, por nós narrado, a prisão de Juca até se justificaria, já que Juca era criminoso habitual e fazia do crime um estilo de vida. As redes sociais assim diziam. A testemunha, morta, estava a salvo, mas a sociedade não! Contudo, a justificativa de tal encerramento preventivo restou ausente, no lapso temporal de noventa dias. A necessidade não foi demonstrada. Logo, entendemos que a prisão de Juca tornou-se ilegal pela falta de fundamentação na sua manutenção, ainda que presentes faticamente os motivos que a justificassem.  Para sermos fiéis ao julgado exarado pela Suprema Corte sobre o tema reproduzimos, aqui, trechos da decisão. Confira o leitor:

A reforma legislativa operada pelo chamado “Pacote Anticrime” (Lei nº 13.964/2019) introduziu a revisão periódica dos fundamentos da prisão preventiva, por meio da inclusão do parágrafo único ao art. 316 do CPP. A redação atual prevê que o órgão emissor da decisão deverá revisar a necessidade de sua manutenção a cada noventa dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar ilegal a prisão preventiva: Art. 316 (...) Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. Assim, a prisão preventiva é decretada sem prazo determinado. Contudo, o CPP agora prevê que o juízo que decretou a prisão preventiva deverá, a cada 90 dias, proferir uma nova decisão analisando se ainda está presente a necessidade da medida. Isso significa que a manutenção da prisão preventiva exige a demonstração de fatos concretos e atuais que a justifiquem. A existência desse substrato empírico mínimo, apto a lastrear a medida extrema, deverá ser regularmente apreciado por meio de decisão fundamentada. A esse respeito, importante mencionar também o § 2º do art. 312 do CPP, inserido pelo Pacote Anticrime: “A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.” STF. 2ª Turma. HC 179859 AgR/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 3/3/2020 (Info 968).

               

                QUESTÃO 19

                Joaquim Barba Longa diplomou-se ao cargo de Deputado Federal. Feliz da vida com a conquista, já que passou a vida amargurado com os insucessos da carreira artística, Barba Longa, por inveja de alguns colegas artistas afamados, resolveu ataca-los publicamente em plenário, taxando-os de vagabundos da Lei Rouanet (lei de benefícios fiscais à cultura). Não satisfeito com os ataques iniciados na Casa Legislativa, Barba Longa deu continuidade aos ataques verbais, a ex colegas específicos, em suas redes sociais. Os artistas, objeto do ataque, propuseram queixa crime pelos delitos de injúria e difamação. Em contrapartida, Barba Longa pediu clemência, ao argumento de que as ofensas foram irrogadas em plenário e, que, portanto, estariam abarcadas pela imunidade material. Pergunta-se: Os ataques verbais de Barba Longa estariam protegidos por sua imunidade material, já que iniciados na Casa Legislativa?

                A resposta negativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, na lavra do informativo 969 decidiu a questão da seguinte forma: Nada disso! Há que se perquiri um juízo de causalidade duplo. O primeiro é o chamado juízo de causalidade temporal, ou seja, as ofensas proferidas nas redes sociais após o debate em plenário. O hiato de tempo não constitui prorrogação do debate. O segundo juízo de causalidade é o material. Esse consiste na ausência de nexo causal entre as declarações exaradas pelo Deputado com a sua função de parlamentar. A questão pano de fundo não foi acerca da distribuição de recursos financeiros para a cultura. Ofensas verbais à dignidade de artistas não se coadunam com a gestão orçamentária do país. Houve, pois, clara quebra do nexo causal. Acatar a imunidade parlamentar, nesse caso, equivaleria a transformar o Plenário em local de conversa fiada, sem finalidade pública. Para sermos fiéis ao julgado exarado pela Suprema Corte reproduzimos, aqui, trecho da decisão. Confira o leitor:

O então Deputado Federal WC (SD-PA) proferiu discurso no Plenário da Câmara dos Deputados no qual afirmou que determinados artistas seriam “bandidos”, “membros de quadrilha”, “verdadeiros ladrões”, “verdadeiros vagabundos da Lei Rouanet”. Esses artistas ingressaram com queixa-crime contra o então Deputado afirmando que ele teria cometido os crimes de difamação (art. 139) e injúria (art. 140 do Código Penal). O STF recebeu esta queixa-crime. O fato de o parlamentar estar na Casa legislativa no momento em que proferiu as declarações não afasta a possibilidade de cometimento de crimes contra a honra, porque ele depois divulgou essas ofensas na Internet. Outro argumento está no fato de que a inviolabilidade material somente abarca as declarações que apresentem nexo direto e evidente com o exercício das funções parlamentares. No caso concreto, embora tenha feito alusão à Lei Rouanet, o parlamentar nada acrescentou ao debate público sobre a melhor forma de distribuição dos recursos destinados à cultura, limitando-se a proferir palavras ofensivas à dignidade dos querelantes. A liberdade de expressão política dos parlamentares, ainda que vigorosa, deve se manter nos limites da civilidade. STF. 1ª Turma. PET 7174/DF, rel. Min. Alexandre de Moraes, red. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgado em 10/3/2020 (Info 969).

                QUESTÃO 20

                Crispim Pires teve a triste sina de perder o irmão mais velho no desastre do rompimento da barragem em Brumadinho. Retratou o jornal da época que esse, foi, sem dúvida alguma, um dos maiores desastres ecológicos do mundo. Premido pela dor da perda de um ente querido, Crispim ajuizou uma ação popular buscando indenização em face da União Federal, do Estado de Minas Gerais e da Vale do Rio Doce. E, assim o fez, na sede de seu domicílio (Campinas), em respeito ao comando emanado da Lei 4.717/85 – LEI DE AÇÃO POPULAR, que propicia a Crispim tal faculdade. Contudo, o caso de Brumadinho ganhou magnitude social e, a consequência disso, foi o ajuizamento de centenas de ações populares, individuais e ações civis públicas. Em virtude dessa concorrência de ações, o juízo federal da terceira região (engloba o Estado de São Paulo) deu-se por incompetente, declinando os autos para o juízo da primeira região (engloba o Estado de Minas Gerais), de onde eclodiu o dano. Em contrapartida, Crispim alegou a violação ao disposto na Lei de Ação Popular e, por via oblíqua, mitigação ao seu direito de acesso à justiça. Assiste razão à Crispim?

                A resposta negativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, na lavra do Informativo 662 decidiu que se afigurou correta a postura do juízo federal da terceira região (Campinas) ao declinar de sua competência. Crispim Pires ficou mesmo foi com o pires na mão. Isso porque o caso de Brumadinho não se resumiu a apenas uma ação popular, isoladamente falando. A concorrência de ações (civis públicas, individuais e populares), por si só, desencadeou a competência concorrente e, em se tratando de competência concorrente, deve ser eleito o foro do local do fato danoso. Para sermos fiel ao que decidiu a Corte Cidadã sobre o tema reproduzimos, aqui, ao leitor, trecho da decisão. Confira:

Em 2019, houve o rompimento de uma barragem de rejeitos de minério, localizada em Brumadinho (MG). O rompimento resultou em um terrível desastre ambiental e humanitário. Felipe, na condição de cidadão, ajuizou ação popular contra a União, o Estado de Minas Gerais e a Vale S.A., pedindo para que os réus fossem condenados a recuperar o meio ambiente degradado, pagar indenização pelos danos causados e pagar multa por dano ambiental. Como Felipe mora em Campinas (SP), ele ajuizou a ação no foro de seu domicílio e a demanda foi distribuída para a 2ª Vara Federal de Campinas (SP). Ocorre que na 17ª Vara Federal de Minas Gerais existem ações individuais, ações populares e ações civis públicas tramitando contra os mesmos réus e envolvendo pedidos semelhantes a essa ação popular ajuizada em Campinas. Quem é competente para julgar esta ação popular: o juízo do domicílio do autor ou o juízo do local em que se consumou o ato danoso? O juízo do local onde se consumou o dano (17ª Vara Federal de Minas Gerais). Regra geral: em regra, o autor pode ajuizar a ação popular no foro de seu domicílio, mesmo que o dano tenha ocorrido em outro local. Isso porque como a ação popular representa um direito político fundamental, deve-se facilitar o seu exercício. Exceção: o STJ entendeu que o caso concreto envolvendo Brumadinho era excepcional com inegáveis peculiaridades que impõem a adoção de uma solução diferente para evitar tumulto processual em uma situação de enorme magnitude social, econômica e ambiental. Assim, para o STJ é necessário superar, excepcionalmente, a regra geral. Entendeu-se que seria necessário adotar uma saída pragmática para permitir uma resposta do Poder Judiciário aos que sofrem os efeitos desta grande tragédia. A regra geral do STJ deve ser usada quando a ação popular for isolada. Contudo, no caso de Brumadinho havia uma ação popular em Campinas (SP) competindo e concorrendo com várias outras ações populares e ações civis públicas, bem como com centenas, talvez milhares, de ações individuais tramitando em MG, razão pela qual, em se tratando de competência concorrente, deve ser eleito o foro do local do fato. Em face da magnitude econômica, social e ambiental do caso concreto, é possível a fixação do juízo do local do fato para o julgamento de ação popular que concorre com diversas outras ações individuais, populares e civis públicas decorrentes do mesmo dano ambiental. STJ. 1ª Seção. CC 164.362-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 12/06/2019 (Info 662).

             QUESTÃO 21

                João Agasalhado, mato-grossense, é famoso advogado tributarista. Do dia para noite o brilhante causídico se viu “encalacrado”, visto que o Estado do Mato Grosso editou uma lei atribuindo responsabilidade solidária aos advogados, correspondentes fiscais e economistas, em relação às obrigações tributárias de seus clientes. Por ter uma extensa cartela de clientes Agasalhado se viu como terceiro responsável de uma obrigação alheia, sem expressa previsão normativa no Código Tributário Nacional. Inconformado pelo fato de uma lei estadual ter ampliado as hipóteses de responsabilidade de terceiros, Agasalhado resolveu levar a questão ao seu órgão de classe (OAB), que achou, por bem, judicializar a questão. E assim, a OAB ajuizou no Supremo Tribunal Federal  a ação direta de inconstitucionalidade 4845. Pergunta-se: A responsabilidade de terceiros em seara tributária é matéria afeta a reserva de lei complementar?

                A resposta afirmativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o STF, no Informativo 966 decidiu da seguinte maneira: A norma é de uma inconstitucionalidade acachapante, pois amplia as hipóteses de responsabilidade de terceiros invadindo a competência do legislador federal para assim dispor, sob o rito da lei complementar, já que a responsabilidade tributária insere-se no campo das normas gerais da matéria. Trata-se de inconstitucional formal, já que subtrai do legislador complementar federal matéria de sua alçada. Para sermos fiéis ao que decidiu a Supremo Corte, confira o leitor trecho de sua decisão:

É inconstitucional lei estadual que disciplina a responsabilidade de terceiros por infrações de forma diversa da matriz geral estabelecida pelo Código Tributário Nacional (CTN). Há, neste caso, uma inconstitucionalidade formal. Ao ampliar as hipóteses de responsabilidade de terceiros por infrações, prevista pelos arts. 134 e 135 do CTN, ou tratar sobre o tema de maneira diferente, a lei estadual invade competência do legislador complementar federal para estabelecer as normas gerais na matéria (art. 146, III, “b”, da CF/88). Caso concreto: é inconstitucional lei estadual que atribui responsabilidade tributária solidária por infrações a toda pessoa que concorra ou intervenha, ativa ou passivamente, no cumprimento da obrigação tributária, especialmente a advogado, economista e correspondente fiscal. STF. Plenário. ADI 4845/MT, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 13/2/2020 (Info 966).

                QUESTÃO 22

                Ribamar Medalha era fazendeiro nas horas vagas e policial militar nas horas cheias do dia. Vizinho de cerca de Merval Cachorro ficou numa saia justa quando o Cachorro lhe pediu para ir a juízo ajudar-lhe a vencer um processo trabalhista de um empregado seu. Antes de iniciar a audiência Medalha fora instruído pelo advogado de Cachorro a omitir fatos e mentir acerca do tempo em que o tal empregado prestou serviços no local. O que não contavam é que Medalha não sabia mentir e deixou todos, inclusive, ele próprio, em péssimos lençóis. O resultado foi o de que Medalha e advogado se tornaram réus em um processo criminal pelo crime de falso testemunho. Durante o transcorrer do processo Medalha teve barrado o seu ingresso no curso de formação de cabo, tendo a sua inscrição recusada pelo fato de estar respondendo a processo criminal pelo crime de falso testemunho. Irresignado Medalha resolveu judicializar a questão e, através, de recurso extraordinário o Supremo Tribunal examinou a questão. Pergunta-se: A idoneidade moral que se espera do candidato que integra a corporação militar, por si só, é apta a ensejar cláusula editalícia que restrinja a participação de candidato que responde a inquérito policial ou a ação penal?

                A resposta negativa se impõe. Sem previsão constitucionalmente adequada e instituída em lei (edital não é lei, nem lhe faz as vezes!) se afigura ilegítima a cláusula editalícia que restrinja a participação de candidato pelo simples motivo de esse responder a inquérito ou a ação penal, sob pena de violação ao princípio da não culpabilidade. Os princípios da hierarquia e disciplina aos quais o militar deve obediência, por si só, não justificam atropelar o princípio da presunção de inocência. Para sermos fiéis ao julgado exarado pela Suprema Corte reproduzimos trecho da decisão ao leitor. Confira:

Sem previsão constitucionalmente adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou a ação penal. STF. Plenário. RE 560900/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 5 e 6/2/2020 (repercussão geral – Tema 22) (Info 965). O ministro Luís Roberto Barroso apresentou duas regras para a ponderação dos valores em jogo e a determinação objetiva de idoneidade moral, quando aplicável ao ingresso no serviço público mediante concurso. A primeira, apta a estabelecer parâmetro pelo qual se pode recusar a alguém a inscrição em concurso público, é a necessidade de condenação por órgão colegiado ou de condenação definitiva. Há analogia com a Lei da “Ficha Limpa” (LC 135/2010), critério que já foi aplicado mesmo fora da seara penal. A segunda regra é a necessidade de relação de incompatibilidade entre a natureza do crime e as atribuições do cargo. Nem toda condenação penal deve ter por consequência direta e imediata impedir alguém de se candidatar a concurso público. Entretanto, para concorrer a determinados cargos públicos, pela natureza deles, é possível, por meio de lei, a exigência de qualificações mais restritas e rígidas ao candidato. Por exemplo, as carreiras da magistratura, das funções essenciais à justiça — Ministério Público, Advocacia Pública e Defensoria Pública — e da segurança pública. O relator concluiu que a solução mediante o emprego dessas regras satisfaz o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, visto que é: a) adequada, pois a restrição imposta se mostra idônea para proteger a moralidade administrativa; b) não excessiva, uma vez que, após a condenação em segundo grau, a probabilidade de manutenção da condenação é muito grande e a exigência de relação entre a infração e as atribuições do cargo mitiga a restrição; e c) proporcional em sentido estrito, na medida em que a atenuação do princípio da presunção de inocência é compensada pela contrapartida em boa administração e idoneidade dos servidores públicos.

                QUESTÃO 23

                      Amanda Amorosa era advogada de sucesso. Mulher solteira, tentou uma produção independente, sem sucesso. Esperou por anos na fila de adoção, mas, finalmente, o esperado aconteceu. Finalmente conseguiu adotar Vitória. Quando da prolação da sentença de adoção, Amanda ficou em êxtase e dedicou-se, exclusivamente, por aproximadamente quatro meses, mais precisamente, por cento e vinte dias, à sua pequena “grande” Vitória. É cediço que a sentença que concede a adoção possui a natureza jurídica de provimento jurisdicional constitutivo. Logo, ainda que Amanda já se sentisse mãe tornou-se mãe efetivamente na data de sentença da adoção de Vitória. Toda essa situação hipotética tem relevância por conta dos prazos recursais em âmbito processual. Isso por conta do fato de que Amanda comunicou aos seus clientes que ficaria afastada de suas atividades causídicas por conta da adoção de Vitória, que ainda era bebê e inspirava cuidados. Comunicou aos clientes, mas não notificou o juízo.  Pergunta-se: A notificação em juízo é imprescindível para a suspensão do prazo processual para a advogada adotante?

                A resposta negativa se impõe.

                A consequência prática do caso acima relatado consubstanciou-se na interposição de um agravo de instrumento. Entendendo estar o prazo processual suspenso por conta da adoção Amanda interpôs o recurso no prazo em finda a licença maternidade. Pairou dúvida sobre a necessidade de notificação ao juízo. A questão bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça, que na esteira do informativo 645, em um caso semelhante, que envolveu a licença paternidade do único patrono da causa em virtude do nascimento da criança (o mesmo raciocínio se aplicando para a adoção), nos revelou o seguinte: O que delimita a suspensão dos prazos processuais não é a notificação em juízo, mas a consumação do fato gerador que consubstancia-se no nascimento ( à partir do parto) ou na adoção, independentemente de comunicação ao juízo. Para sermos fiéis ao que decidiu a Corte Cidadã sobre o tema, colacionamos trecho da decisão. Confira o leitor:

Tempestividade. Suspensão do prazo recursal. Nascimento do filho do único patrono da causa. Comunicação imediata ao juízo. Desnecessidade. A suspensão do processo em razão da paternidade do único patrono da causa se opera tão logo ocorra o fato gerador (nascimento ou adoção), independentemente da comunicação imediata ao juízo. O propósito recursal é dizer sobre a tempestividade da apelação, considerando o nascimento do filho do único patrono da causa no curso do prazo recursal. A disposição legal do art. 313, X e § 7º, do CPC/2015, ao lado do previsto no inciso IX do mesmo artigo, visa dar concretude aos princípios constitucionais da proteção especial à família e da prioridade absoluta assegurada à criança, na medida em que permite aos genitores prestar toda a assistência necessária – material e imaterial – ao seu filho recém-nascido ou adotado, além de possibilitar o apoio recíproco em prol do estabelecimento da nova rotina familiar que se inaugura com a chegada do descendente. Assim, se a lei concede ao pai a faculdade de se afastar do trabalho para acompanhar o filho nos seus primeiros dias de vida ou de convívio familiar, não é razoável lhe impor o ônus de atuar no processo, durante o gozo desse nobre benefício, apenas para comunicar e justificar aquele afastamento. Logo, a legislação não impõe ao advogado o ônus de comunicar ao Juízo o nascimento de seu filho para só a partir de então se beneficiar da suspensão. Por força da lei, a suspensão do processo pela paternidade tem início imediatamente à data do nascimento ou adoção, ainda que outra seja a data da comprovação nos autos, que pode ser feita no momento da interposição do recurso ou da prática do primeiro ato processual do advogado, desde que aquela se dê antes de operada a preclusão, já considerado no cômputo do respectivo prazo o período suspenso de 8 (oito) dias. Grifos nossos!

                QUESTÃO 24

                      Lindolfo foi um dos policiais militares designados para participar da marcha da maconha. Isso porque é licita a manifestação de pensamento, desde que não incite a prática de crimes. Mas, como vivenciávamos época de Copa de Mundo, a Força Nacional de Segurança tinha receio de que das manifestações surgissem atos de violência que ameaçassem a paz, fato esse que, por si só, justificou a presença de Lindolfo na passeata. Lindolfo era um rapaz que chamava atenção pelos seus atributos físicos. Muito paquerador conheceu Lindomar em uma das passeatas e começaram a flertar. Ela logo apresentou o rapaz para a sua turma de amigos “barra pesada” e ele, de plano, ficou por dentro do planejamento de uma grande operação de venda de drogas, da qual a sua futura ex pretendente fazia parte. Silenciou-se quanto a sua atividade funcional, ganhou a confiança do grupo e, com elementos suficientes de informações, levou ao delegado de polícia a notícia da comercialização da venda de droga em determinada comunidade paulista. Em operação policial, Lindomar foi presa em flagrante, e, denunciada, pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecente. Aquela era, de fato, um amor bandido. Inconformada, a defesa de Lindomar impetrou um habeas corpus alegando que Lindolfo atuou como agente infiltrado sem autorização judicial para tanto. Pleiteou assim, o relaxamento da prisão sustentando a ilegalidade das provas obtidas por meio da infiltração ao arrepio da lei. Pergunta-se: As provas acima obtidas estariam fulminadas de nulidade?

                A resposta afirmativa se impõe. A questão bateu às portas do Supremo Tribunal Federal que instado a pronunciar-se sobre o tema, no Informativo 932 nos informou o seguinte: A participação de Lindolfo foi muito além da participação de um agente de inteligência, de um espião. Ele foi além. Agiu, sim, na condição de verdadeiro agente infiltrado sendo que a sua atuação fora permeada por dissimulação, engano e interação. Não houve no caso concreto representação do delegado e tampouco requerimento do membro do Ministério Público ao juiz para que Lindolfo atuasse na qualidade de agente infiltrado. O mero fato de o promotor de justiça oferecer denúncia não ratifica uma atuação que ocorreu ao arrepio da lei. Diante disso o STF declarou a ilicitude da prova e o desentranhamento da infiltração. Para sermos fiéis ao que decidiu a Suprema Corte sobre o assunto reproduzimos trecho de sua decisão. Confira o leitor:

A Turma entendeu que o policial militar em questão atuou como agente infiltrado sem autorização judicial e, por isso, de forma ilegal. Explicou que a distinção entre agente infiltrado e agente de inteligência se dá em razão da finalidade e amplitude de investigação. O agente de inteligência tem uma função preventiva e genérica e busca informações de fatos sociais relevantes ao governo; o agente infiltrado age com finalidades repressivas e investigativas em busca da obtenção de elementos probatórios relacionados a fatos supostamente criminosos e organizações criminosas específicas. Segundo o colegiado, o referido agente foi designado para coletar dados para subsidiar a Força Nacional de Segurança em atuação estratégica diante dos movimentos sociais e dos protestos ocorridos no Brasil em 2014. Ele não precisava de autorização judicial para, nas ruas, colher dados destinados a orientar o plano de segurança para a Copa do Mundo. Entretanto, no curso de sua atividade originária, apesar de não ter sido designado para investigar a paciente nem os demais envolvidos, acabou realizando verdadeira e genuína infiltração no grupo do qual ela supostamente fazia parte e ali obteve dados que embasaram sua condenação. É evidente a clandestinidade da prova produzida, porquanto o policial, sem autorização judicial, ultrapassou os limites da sua atribuição e agiu como incontestável agente infiltrado. A ilegalidade, portanto, não reside na designação para o militar atuar na coleta de dados genéricos nas ruas do Rio de Janeiro, mas em sua infiltração, com a participação em grupo de mensagens criado pelos investigados e em reuniões do grupo em bares, a fim de realizar investigação criminal específica e subsidiar a condenação. Suas declarações podem servir para orientação de estratégias de inteligência, mas não como elementos probatórios em uma persecução penal. A Turma também reconheceu a aplicabilidade, no caso concreto, das previsões da Lei 12.850/2013 (3), que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado. Ainda que se sustente que os mecanismos excepcionais previstos nesse diploma legal incidem somente nas persecuções de delitos relacionados a organizações criminosas nos termos nela definidos, os procedimentos probatórios ali regulados devem ser respeitados, por analogia, em casos de omissão legislativa. No ponto, o colegiado asseverou que o policial militar começou a atuar como agente infiltrado quando o referido diploma legal já estava em vigor. Ademais, considerou que o pedido requerido no writ apresenta uma impugnação específica, a partir dos debates ocorridos nas instâncias inferiores e dos elementos probatórios aportados nos autos e reconhecidos pelos juízos ordinários. Portanto, caracteriza-se cognição compatível com a via estreita do habeas corpus. Ainda que a análise em habeas corpus tenha cognição limitada, se, a partir dos elementos já produzidos e juntados aos autos, for evidente a incongruência ou a inconsistência da motivação judicial, devem ser resguardados os direitos violados com a concessão da ordem.
(1) CPP/1941: “Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. (...) § 3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.”
(2) CP/1940: “Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:”
(3) Lei 12.850/2013: “Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites. Art. 11. O requerimento do Ministério Público ou a representação do delegado de polícia para a infiltração de agentes conterão a demonstração da necessidade da medida, o alcance das tarefas dos agentes e, quando possível, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e o local da infiltração.”

HC 147837/RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 26.2.2019. (HC-147837)

                QUESTÃO 25

                José das Aves era pai amoroso com suas três filhas, as suas três Marias. Maria das Neves, Maria das Flores e Maria da Consolação. Em vida doou um apartamento para as duas primeiras e cedeu em comodato o uso da sua casa de praia para a última, que por ali residiu por seis anos, até o falecimento de seu amado pai. Contudo, após as cerimônias fúnebres, a burocracia e sentimentos diversos vieram bater na porta das Marias. Para a morte há sempre uma desculpa. Para a vida sempre um por quê. Fato é que as duas primeiras Marias trouxeram à colação a doação dos apartamentos para que, somados a casa de praia, o valor dos bens fosse dividido por igual entre as três herdeiras necessárias. Todavia, as duas Marias, por sentirem-se prejudicadas financeiramente, e entenderem ter havido violação ao princípio da isonomia, exigiram de Maria da Consolação a quantia de R$144.000 (cento e quarenta e quatro mil reais), equivalente ao valor do aluguel do imóvel praiano, pelo período de seis anos, valor esse extraído do aluguel mensal de dois mil reais, multiplicado por setenta e dois meses. Inconsolada, Consolação resolveu judicializar a questão e trouxe em sua peça vestibular o argumento de que empréstimo não se confunde com doação e, portanto, não se justifica que se traga a colação um bem que não lhe fora cedido a título de doação mas de empréstimo? Pergunta-se: É cabível trazer à colação o contrato de comodato?

                A resposta negativa se impõe. A lei não exige que se ofereça à colação o comodato. Sim, ela usou, mas seu genitor não perdeu em momento algum o direito de alienar e obter de volta o imóvel com o seu uso. Bastava uma simples notificação no prazo de quinze dias. Assim rezava o contrato. Também não perdeu dinheiro. O fato de não receber alugueres não significa perda patrimonial. Afinal não ganhar não significa perder. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, no Informativo 644, nos ensinou o seguinte: Não há que se falar em interpretação ampliativa do rol do ART. 2002 do Código Civil, a contemplar hipóteses não previstas e não desejadas pelo legislador, sob pena de se desvirtuar o instituto da colação, sendo pois dispensável que a herdeira necessária traga à colação o valor correspondente a ocupação e uso gratuito do imóvel do autor da herança, não se confundindo com gasto aquilo que apenas se deixou de ganhar. Para sermos fiéis ao que decidiu a Corte Cidadã sobre o tema colacionamos trecho da decisão. Confira o leitor:

 

Sucessão. Inventário. Imóvel residencial. Ocupação e uso gratuito (comodato). Herdeiro. Adiantamento da legítima. Inocorrência. Colação. Desnecessidade. Inicialmente, salienta-se que a utilização do imóvel decorre de comodato e a colação restringe-se a bens doados a herdeiros e não a uso e ocupação a título de empréstimo gratuito, razão pela qual não se vislumbra ofensa ao art. 2.002 do Código Civil. Com efeito, não se pode confundir comodato, que é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis, com a doação, mediante a qual uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra. Somente a doação tem condão de provocar eventual desequilíbrio entre as quotas-partes atribuídas a cada herdeiro necessário (legítima), importando, por isso, em regra, no adiantamento do que lhe cabe por herança. Já a regra do art. 2.010 do Código Civil dispõe que não virão à colação os gastos ordinários do ascendente com o descendente, enquanto menor, na sua educação, estudos, sustento, vestuário, tratamento nas enfermidades, enxoval, assim como as despesas de casamento, ou as feitas no interesse de sua defesa em processo-crime. À luz dessa redação, poderia haver interpretação, a contrario sensu, de que quaisquer outras liberalidades recebidas pelos descendentes deveriam ser trazidas à colação. No entanto, o empréstimo gratuito não pode ser considerado "gasto não ordinário", na medida em que a autora da herança nada despendeu em favor de uma das herdeiras a fim de justificar a necessidade de colação. REsp 1.722.691-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, por unanimidade, julgado em 12/03/2019, DJe 15/03/2019.

                QUESTÃO 26

                Eugênio Pipa Avoada finalizou a faculdade de Direito e já se mudou de mala e cuia para Portugal, a fim de engatar um mestrado em Direito Constitucional. Foi ele beber nas águas e terras de Canotilho. Após o término do curso, Eugênio retorna ao Brasil. É aprovado no concurso para o cargo de oficial de justiça e não consegue progressão funcional ante o fato de o seu diploma de mestre não estar revalidado. Com dó de Pipa Avoada, o Estado de Roraima edita uma lei local no sentido de vedar aos demais poderes da República a revalidação de diplomas de mestrado realizado fora do país. Sentindo-se usurpada em sua competência legislativa, a União leva a questão ao Supremo Tribunal Federal. Em Seara defensiva, o Estado de Roraima argumenta que apenas está fazendo uso de sua competência suplementar para tratar do assunto. Assiste razão ao Estado de Roraima?

                A resposta negativa se impõe. A internacionalização de títulos acadêmicos de mestrado e doutorado devem receber tratamento uniforme em todo território nacional, pois preenchem as bases de diretrizes da educação, competindo, pois, a União a competência privativa para tratar da fixação das diretrizes da educação nacional. No caso em comento, o Estado de Roraima incidiu em vício de inconstitucionalidade formal, pois ausente a sua competência legislativa. Logo, a internacionalização de títulos acadêmicos, por merecerem tratamento uniforme no pais, constituem o núcleo duro das bases da educação. Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, na lavra de seu Informativo 979. Para sermos fiéis ao julgado examinado pela Suprema Corte, colacionamos, aqui, trecho da decisão. Confira o leitor.

É inconstitucional lei estadual que afasta as exigências de revalidação de diploma obtido em instituições de ensino superior de outros países para a concessão de benefícios e progressões a servidores públicos. Essa lei invade a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, CF/88). STF. Plenário. ADI 6073, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 27/03/2020.

                QUESTÃO 27

                Maria Amargosa divorciou-se de Bento Avantajado. Amargosa tinha um ciúme fora do normal, e, não havia relacionamento que resistisse a tantas desavenças. Após o divórcio, Amargosa amargou uma solidão desesperadora. Uma solidão que adoeceu-lhe a alma e o espírito. Enlouqueceu com o seu vazio interior. Fato é que completamente fora de si Amargosa tentou um suicídio. Pulou de um viaduto. Não morreu, mas ficou em coma, segundo os médicos, por tempo indeterminado. Tornou-se incapaz, incapacidade relativa, mas não menos incapacidade. Pergunta-se: Sendo essa uma incapacidade superveniente ao divórcio tal incapacidade, por si só, teria o condão, de alterar a competência funcional do juízo prevento, ou seja daquele que decretou o divórcio e agora irá decretar a partilha de bens do casal (Isso porque o representante legal de Amargosa propôs ação de partilha, posterior ao divórcio, em comarca diversa daquela em que fora proferido o divórcio, ou seja, naquela em que situado o atual domicílio de Amargosa)?

                A resposta negativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça em seu Informativo 643, nos revelou o seguinte: Estamos diante de um embate entre competência absoluta versus competência relativa. Afasta-se a regra do domicílio do incapaz (ART. 50 do CPC), regra de competência territorial relativa, quando estivermos frente a uma regra de competência funcional, competência absoluta, como se dá em casos de ações de divórcio cumuladas com partilha de bens. Prepondera a competência funcional/absoluta quando em cotejo com uma competência territorial/relativa. Pode-se mesmo falar em uma vis atrativa de competência absoluta. O fundamento para tanto é o de que a competência absoluta submete-se a um regime cogente, fulcrado no interesse público, diverso do regime de competência relativa, fulcrado em regras dispositivas e, pois, sujeito a preclusão. Para sermos fiéis ao que decidiu a Corte Cidadã sobre o tema colacionamos, ao leitor, trecho da decisão. Confira:

Ação de partilha posterior ao divórcio. Conexão substancial entre as ações. Competência funcional de natureza absoluta. Prevenção. Incapacidade superveniente de uma das partes. Foro de domicílio do incapaz. Competência territorial especial de natureza relativa. nicialmente, registre-se que, sob uma interpretação sistemática, havendo partilha posterior ao divórcio, surge um critério de competência funcional do juízo que decretou a dissolução da sociedade conjugal, em razão da acessoriedade entre as duas ações (art. 61 do CPC/2015). Ou seja, entre as duas demandas há uma interligação decorrente da unidade do conflito de interesses, pois a partilha é decorrência lógica do divórcio. Assim, o legislador permitir a partilha posterior, não quer dizer que a ação autônoma de partilha não deva ser julgada pelo mesmo juízo. Nota-se, portanto, que entre as duas demandas (divórcio e partilha posterior) há uma relação de conexão substancial, a qual, inevitalmente, gera a prevenção do juízo que julgou a ação de divórcio. No tocante à incapacidade superveniente, o art. 50 do CPC/2015 dispõe que, nas ações em que o incapaz for réu, o juízo competente é o do local do domicílio do seu representante. Trata-se de regra especial de competência territorial que protege o incapaz, por considerá-lo parte mais frágil na relação jurídica. O conflito, então, se dá entre uma regra de competência funcional (prevenção por acessoriedade) e outra de competência territorial especial (domicílio do incapaz). A competência territorial especial, apesar de ter como efeito o afastamento das normas gerais previstas no diploma processual, possui natureza relativa; enquanto que a competência funcional, decorrente da acessoriedade entre as ações de divórcio e partilha, possui natureza absoluta. Assim, como a competência absoluta não admite, em regra, derrogação, prorrogação ou modificação, a ulterior incapacidade de uma das partes (regra especial de competência relativa) não altera o juízo prevento.

                QUESTÃO 28

                A empresa de material de construção Constrói Bem foi autuada em virtude de haver recolhido à previdência valores inferiores ao que se comprometeu em convenção coletiva de trabalho, firmada por sindicato, ainda não registrado no Ministério do Trabalho e do Emprego. A fim de discutir sobre a legalidade da respectiva convenção coletiva, o sindicato ajuizou uma demanda, na qualidade de substituto processual da categoria. Alegou que embora não tenha registro no Ministério do Trabalho possui registro no cartório de registro civil de pessoas jurídicas. O juiz não considerou para fins de personalidade sindical o mero registro em cartório e proferiu sentença terminativa, julgando o pedido sem apreciação do mérito, por faltar a legitimidade da parte, que nada mais é que a pertinência subjetiva da lide. É a representatividade adequada que assegura a unicidade sindical e garante a legitimidade para o sindicato atuar em juízo?

                A resposta afirmativa se impõe. A questão bateu às portas do Supremo Tribunal Federal, que na lavra do Informativo 931, nos ensinou o seguinte: O Sindicato sem registro no Ministério do Trabalho e do Emprego não é sujeito de direito, o que lhe retira a qualidade de parte. Logo, a mera titulação de pessoa jurídica, sem o registro, não qualifica o sindicato para fins de representar uma categoria. Assim, a convenção coletiva firmada por sindicato sem registro não vincula as empresas contratantes, já que a falta de representação adequada é causa de ilegitimidade ativa do sindicato para atuar na defesa de seus "representados". Atente o leitor que a jurisprudência do STF, embora conheça com profundidade a diferença prática entre os dois institutos, confere os mesmos efeitos práticos da legitimidade ad processum (pressuposto processual) e da legitimidade ad causam (condição da ação), já que a ilegitimidade ad processum (defeito de representação processual), aqui, implicará na própria ilegitimidade ad causam. Para sermos fiéis ao leitor reproduzimos, aqui trecho da decisão exarada pela Suprema Corte:

A legitimidade dos sindicatos para representação de determinada categoria depende do devido registro no Ministério do Trabalho em obediência ao princípio constitucional da unicidade sindical (art. 8º, II, da CF/88). STF. 1ª Turma. RE 740434 AgR/MA, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19/2/2019 (Info 931).

                QUESTÃO 29

                Ariovaldo, paranaense, tinha uma vida tranquila no interior do seu Estado. Fez a faculdade de Direito. Um ano depois de formado, foi aprovado em concurso público, no ano de 1989, para o Cargo de Escrivão Judicial, e, agora, pasme, ficou até de cama, pois o seu ato de nomeação ao cargo de Escrivão Judicial, e de muitos colegas seus, foi invalidado pelo Conselho Nacional de Justiça. Na ocasião, Ariovaldo submeteu-se a um concurso duro. Esforçou-se muito. O Estado do Paraná abriu o concurso, a fim de selecionar candidatos a assumirem, em caráter privado a titularidade de cartórios judiciais. No ano de 1977, com a Emenda 7 inserida na CR/67, o poder constituinte derivado já havia dito que todas as serventias seriam estatizadas. Ai ai ai. Em 1988, a Constituição da República repetiu a regra com norma de transição: "A partir de agora a gente respeita as serventias judiciais que foram privatizadas, deixa lá quem já estava, mas ocorrendo vacância, as novas, serão estatizadas (ART.31 do ADCT)". A CR/88 falou, mas o Estado do Paraná não ouviu (a Lei Maior gritou no deserto!), e o coitado, do Ariovaldo, agora, quase 20 anos depois, vai ter que "pagar o pato"?! Mas ele fez concurso como manda a Constituição! Atuou de boa fé. Se fez concurso não é servidor público estável? E o seu direito líquido e certo? Haveria burla ao princípio da indisponibilidade ao não se considerar o concurso público por ele realizado?

                 A resposta negativa se impõe. Tudo isso foi questionado em um mandado de segurança impetrado por Ariovaldo, e por muitos colegas, que estavam na mesma situação que ele. Alegaram a teoria do fato consumado. Afinal, que culpa tinham se o Estado foi desobediente? Chamado a decidir o caso, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do Informativo 930, disse o seguinte: " Não é admissível manter a situação como está, pois não é possível continuar perpetuando uma agressão à Constituição". Na ótica do STF agiu bem o Conselho Nacional de Justiça. Na época do concurso já tinha ocorrido a vacância das serventias, até então privatizadas. Deveriam ter sido estatizadas e não o foram. Houve violação frontal ao ART.31 do ADCT, norma autoaplicável, por excelência. No caso concreto, não há que se falar também em aplicação do ART 54 da Lei 9784/99, já que não há decadência e aplicação da teoria do fato consumado quando o ato viola diretamente a CR.   Atente o leitor para os seguintes pontos: O concurso de 1989 privatizava uma serventia que já deveria ter sido estatizada desde 1977. Na serventia privatizada o particular a mantém com recursos próprios, sendo remunerado por custas e emolumentos. Na serventia estatizada o escrivão é remunerado pelos cofres públicos. Veja uma sútil diferença. O problema não foi o concurso, mas o tipo de concurso. Como validar um cargo cujo provimento foi inválido, ao arrepio da Constituição?! Se o provimento é inválido ele não é servidor, quanto mais estável. A boa fé dele é reconhecida sim, tanto que os atos por ele praticados foram mantidos e ele não teve que devolver o que arrecadou aos cofres públicos. Se a situação parece injusta para Ariovaldo, a sua situação individual, não pode colocar em cheque a força normativa da CR, sob pena de tranformá-la em mera folha de papel. Nada impede que aqueles que se sentirem prejudicados ingressem com uma demanda indenizatória em face do Estado desobediente. É livre o direito de petição. O que não se concebe é que se rasgue a CR e faça de seus comandos letra morta. Para sermos fiéis ao que decidiu o Supremo Tribunal Federal sobre o tema, confira o leitor trecho da decisão:

É válido ato do CNJ que, ao dar plena aplicabilidade ao art. 31 do ADCT, decide pela invalidade dos atos administrativos de nomeação de todos os titulares de cartórios privatizados que tenham ingressado no cargo após 5 de outubro de 1988, data de promulgação da CF em vigor. As pessoas que assumiram as serventias judiciais depois da CF/1988, em caráter privado, não têm direito líquido e certo de nelas permanecerem, qualquer que seja a forma de provimento. Há flagrante inconstitucionalidade a partir do momento em que assumem cargo em serventia que deveria ser estatizada. Isso porque é inconstitucional o provimento de pessoas para exercerem a função de titular de serventias judiciais, com caráter privado (serventias judicias privatizadas / não estatizadas), após a CF/88. O art. 31 do ADCT é autoaplicável, de modo que é obrigatória a estatização das serventias judiciais à medida que elas fiquem vagas. O prazo decadencial do art. 54 da Lei nº 9.784/99 não se aplica quando o ato a ser anulado afronta diretamente a Constituição Federal. STF. 1ª Turma. MS 29323/DF, MS 29970/DF, MS 30267/DF e MS 30268/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgados em 12/2/2019 (Info 930).

                 Aqui, pontuamos ao leitor uma possível releitura da jurisprudência sobre o tema. A vedação absoluta a teoria do fato consumado vem sofrendo mutação. Isso porque em caso envolvendo um policial rodoviário federal que teria ingressado no cargo por força de uma decisão liminar dotada, portanto, de caráter precário, tendo atuado na função por mais de dez anos consecutivos, o Superior Tribunal de Justiça, em julgado recentíssimo, publicado em 15 de abril do ano de 2020, decidiu que devido a situação excepcional do caso concreto, o policial teria o direito de permanecer no cargo, ao argumento de que uma solução padronizada de afastamento do servidor poderia trazer mais danos sociais do que a manutenção do servidor no cargo, trazendo danos desnecessários e irreparáveis ao servidor. Confira o leitor trecho da decisão:

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO.
CONCURSO PÚBLICO PARA PROVIMENTO DE CARGO DE POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. EXIGÊNCIA DE APROVAÇÃO EM EXAME DE MOTORISMO. POSSE NO CARGO CONCEDIDA POR LIMINAR EM 1999. DECURSO DE MAIS DE 20 ANOS DESDE A CONCESSÃO DA LIMINAR. DISTINGUISHING. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL DO SERVIDOR CONHECIDO PARA DAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL DO PARTICULAR.
1. A Vice-presidência desta Corte entendeu que o entendimento firmado por esta Corte, em princípio, destoa da manifestação exarada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE-RG 608.482, cuja tese firmada em repercussão geral consagra que "não é compatível com o regime constitucional de acesso aos cargos públicos a manutenção no cargo, sob fundamento de fato consumado, de candidato não aprovado que nele tomou posse em decorrência de execução provisória de medida liminar ou outro provimento judicial de natureza precária, supervenientemente revogado ou modificado" (Tema 476/STF). Por este motivo, encaminhou os autos para eventual juízo de retratação. A despeito do douto entendimento da Vice-Presidente, entendo que a esta Turma não divergiu do Tema 476/STF.
2. De fato, a Primeira Turma, seguindo a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal em repercussão geral (RE 608.482/RN, Rel.
Min. Teori Zavascki, DJe de 30.10.2014), entendia inaplicável a Teoria do Fato Consumado aos concurso público, não sendo possível o aproveitamento do tempo de serviço prestado por força de decisão judicial pelo militar temporário, para efeito de estabilidade.
3. Contudo, a Primeira Turma passou a entender que existem situações excepcionais, como a dos autos, nas quais a solução padronizada ocasionaria mais danos sociais do que a manutenção da situação consolidada, impondo-se o distinguishing, e possibilitando a contagem do tempo de serviço prestado por força de decisão liminar para efeito de estabilidade, em necessária flexibilização da regra (REsp. 1.673.591/RS, Rel. Min. REGINA HELENA COSTA, DJe 20.8.2018); caso dos autos, em que a liminar que deu posse ao recorrente no cargo de Policial Rodoviário Federal foi deferida em 1999 e desde então o recorrente está no cargo, ou seja, há 20 anos.
4. Agravo conhecido para dar provimento ao Recurso Especial do Servidor a fim de assegurar sua manutenção definitiva no cargo de Policial Rodoviário Federal.
(AREsp 883.574/MS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/02/2020, DJe 05/03/2020)


                QUESTÃO 30

Em nosso caso hipotético da vida como ela é o Procurador Geral de Justiça ajuizou uma Adin Estadual (Ação Direta de Inconstitucionalidade Estadual), também conhecida como Representação de Inconstitucionalidade junto ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro questionando o mecanismo de acesso ao ensino superior ditado pelas leis fluminenses 3.524/00 e 4.061/03. Essas leis disciplinam o acesso dos alunos às universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro. Do total de vagas de todos os cursos das universidades públicas fluminenses, cinquenta porcento são reservados para alunos de escolas públicas municipais, quarenta porcento para negros e dez porcento para portadores de deficiência. Os demais candidatos, enquadrados fora de tais padrões, só poderão concorrer a trinta porcentos das vagas oferecidas.

O Ministério Público alega como pano de fundo, portanto, questão de mérito a suscitar a inconstitucionalidade material das normas uma ofensa direta ao princípio da isonomia, além do desrespeito frontal ao princípio constitucional da proporcionalidade.

Concordando com os argumentos expostos pelo Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgou procedente o pedido da ação direta, considerando que houve ofensa direta ao princípio da igualdade, princípio esse estampado na Constituição Fluminense, bem como na Constituição da República.

O Estado do Rio de Janeiro não se conformou com o julgamento que lhe fora desfavorável e interpôs Recurso Extraordinário junto ao Supremo Tribunal Federal, já que a norma da Constituição Estadual que fora violada encontra correspondência na Constituição Federal.

Contudo, interpôs o recurso extraordinário no vigésimo quarto dia do prazo, ao argumento de que a Fazenda Pública possui prazo em dobro para as suas manifestações. Pergunta-se: o Estado do Rio de Janeiro atuou observando a tempestividade recursal?

A resposta negativa se impõe.

Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, na lavra do Informativo 929, nos ensinou o seguinte: O Estado do Rio de Janeiro comeu mosca. Perdeu o prazo recursal. “O direito não socorre aos que dormem”. Isso porque os prazos em dobro só se aplicam para os processos subjetivos, aqueles em que as partes discutem relações concretas e individualizadas. Não há, pois, que se falar em aplicação do prazo em dobro para os processos de fiscalização normativa abstrata. Logo, não há duplicidade de prazo para processo objetivo, mesmo que seja para a interposição de recurso extraordinário.

Observação: No caso concreto, apreciado pelo STF, foi ajuizada uma ADI pela CONFENEN (Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino) diretamente no STF questionando a constitucionalidade das referidas leis fluminenses. Adaptamos o exemplo para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para fins meramente didáticos, a fim de abarcar a interposição do recurso extraordinário. 

Para sermos fiéis ao que decidiu a Suprema Corte sobre o tema, confira o leitor trecho da decisão:

Não se conta em dobro o prazo recursal para a Fazenda Pública em processo objetivo, mesmo que seja para interposição de recurso extraordinário em processo de fiscalização normativa abstrata. Não há, nos processos de fiscalização normativa abstrata, a prerrogativa processual dos prazos em dobro. Não se aplica ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade a norma que concede prazo em dobro à Fazenda Pública. Assim, por exemplo, a Fazenda Pública não possui prazo recursal em dobro no processo de controle concentrado de constitucionalidade, mesmo que seja para a interposição de recurso extraordinário. STF. Plenário. ADI 5814 MC-AgR-AgR/RR, Rel. Min. Roberto Barroso; ARE 830727 AgR/SC, Rel. para acórdão Min. Cármen Lúcia, julgados em 06/02/2019 (Info 929).

                QUESTÃO 31

 

Aparício Mosquito era homem suspeito na comunidade em que vivia. Todos desconfiavam, inclusive, a polícia, que Aparício era o “chefão” da organização criminosa que comandava o tráfico no morro. A polícia, de maneira informal, já estava de olho em seus passos. O delegado Juca Nuvem quis inovar o ordenamento jurídico. Desconfiado que Mosquito comandava o tráfico pelo celular, através do aplicativo do watsapp, formulou uma representação ao magistrado da comarca pleiteando a apreensão do aparelho de Mosquito a fim de proceder ao espelhamento das conversas do watsapp e, assim, realizar a sincronização do aplicativo com a computador, visando ao monitoraramento das conversas realizadas.

 O juiz deferiu o pedido do delegado. O celular de Mosquito foi apreendido e, junto com ele, a captação das conversas pelo watsappweb. Com isso, a polícia colheu elementos suficientes de informação, aptos ao embasamento da denúncia efetuada pelo Ministério Público.

Inconformado com a qualificação de agora acusado, Mosquito impetrou habeas corpus, ao argumento de ser o espelhamento um meio de obtenção de prova ilegal e, por força da aplicação do princípio dos frutos da árvore envenenada, alegou a nulidade de todas as provas decorrentes de tal espelhamento. Pergunta-se: Tais provas revestem-se de licitude?

A resposta negativa se impõe.

A questão bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça, que no Informativo 640, nos ensinou que a medida é ilegal, na medida em que o espelhamento das conversas obtidas pelo watsapp não é equiparado a uma interceptação telefônica, dada a ausência de previsão legal para tanto, no que concerne a quebra do sigilo do e-mail, já que espelhamento reflete também a quebra do sigilo do e-mail e não somente a interceptação de conversas telefônicas. É, pois a soma de ambos, meio híbrido de obtenção de prova, sem respaldo legal. Para sermos fiéis ao que decidiu a Corte Cidadã sobre o tema colacionamos, aqui, ao leitor, trecho da decisão. Confira:

É nula decisão judicial que autoriza o espelhamento do WhatsApp via Código QR para acesso no WhatsApp Web. Também são nulas todas as provas e atos que dela diretamente dependam ou sejam consequência, ressalvadas eventuais fontes independentes. Não é possível aplicar a analogia entre o instituto da interceptação telefônica e o espelhamento, por meio do WhatsApp Web, das conversas realizadas pelo aplicativo WhatsApp. STJ. 6ª Turma. RHC 99.735-SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/11/2018 (Info 640). É nula decisão judicial que autoriza o espelhamento do WhatsApp via Código QR para acesso no WhatsApp Web. Também são nulas todas as provas e atos que dela diretamente dependam ou sejam consequência, ressalvadas eventuais fontes independentes. Não é possível aplicar a analogia entre o instituto da interceptação telefônica e o espelhamento, por meio do WhatsApp Web, das conversas realizadas pelo aplicativo WhatsApp. STJ. 6ª Turma. RHC 99.735-SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/11/2019 (Info 640).

                QUESTÃO 32

Juca Popay era casado com Regina Palito sob o regime da comunhão universal de bens. Casaram-se na praia, em alto estilo. Juca, após o casamento, tornou-se sócio de uma determinada empresa no ramo alimentício. Apenas ele. Dia desses, a casa caiu e o casamento ruiu. Eis de Popay encantou-se por Olívia Brutos e divorciou-se de Regina Palito. Foi um choque. Dizem que o coronavírus a que sobreviveu afetou-lhe o juízo. Quando da partilha ficou estipulado que Regina Palito teria direito as cotas societárias titularizadas pelo ex marido, pois a meação do outro cônjuge é direito dela no regime da comunhão universal de bens: O que é meu é seu. O que é seu é nosso! Logo, metade das cotas vieram para ela. E isso independe do tipo societário. Após o divórcio, Juca ficou na administração exclusiva das cotas societárias porque a divisão das cotas não é imediata. Depois de dois meses com o ex marido na administração a sociedade empresária, essa fechou as portas, isto é, encerrou as suas atividades comerciais. Com a pandemia do coronavírus as demissões foram em massa e a empresa já não possuía mais capital de giro para continuar.  Quebrou. Faliu. Virou pó.

            A pergunta que não quer calar é a seguinte: Como deve ser feita essa divisão de cotas entre o casal após a falência da empresa?

Resposta: Não são as cotas sociais que são dividas no divórcio e, sim, a expressão econômica das cotas empresariais que integram o patrimônio comum do casal, independentemente do tipo societário. Isso porque a afecctio societatis é indivisível. A comunhão de interesses comuns não pode ser partilhada com um o intruso, ou seja, com o terceiro, ainda que esse terceiro seja o ex cônjuge, o meeiro. Além disso, o intruso, no caso, Regina Palito poderá, com o seu ingresso, desvirtuar a função social da empresa. Ressalte-se que a expressão econômica das cotas implica em montante do capital social integralizado na data da separação de fato do casal. Base legal: Art. 1031 do Código Civil. Contudo, o ponto aqui é que a empresa não existe mais e não há como aplicar o balanço especial do art. 1031 do CC. Aqui é uma exceção.  Regina Palito não pode responder pela falência da empresa que nem sua era. Fato! Seu ex marido era o único responsável pela administração das cotas. O pagamento efetivo das cotas não havia sido realizado por ele quando da partilha. Atuava como gestor do patrimônio alheio. Já que Regina Palito ficou privada das cotas ainda lhe é de direito receber juros pela privação., a fim de atenuar-lhe o desequilíbrio da divisão de bens quando do momento da partilha. Logo receberá pelas cotas (obrigação principal) com juros e correção monetária (obrigação acessória).

Instado a se pronunciar sobre o tema, o STJ, no informativo 662, decidiu que a partilha se dará com base no valor efetivamente investido por Juca na constância da sociedade conjugal. Por impossibilidade fática, qual seja, encerramento repentino das atividades da empresa, que quebrou, não há viabilidade jurídica na aplicação do art. 1031 do CC no que concerne ao balanço patrimonial. Logo, o que ele desembolsou na empresa enquanto estava casado é que será determinante para o pagamento como expressão econômica das cotas no divórcio. Para sermos fiéis ao julgado exarado pela Corte Cidadã, confira o leitor trecho do julgado a que nos referimos no caso hipotético:

Divórcio. Partilha. Cotas sociais de empresa. Separação de fato. Administração exclusiva de um dos cônjuges. Atividades encerradas. Juros e correção monetária. Cabimento. Na presente situação, por sua vez, discute-se justamente realidade fática em que o "varão ficou na posse e administração da pessoa jurídica, que encerrou suas atividades após a separação".

Na espécie, a ex-cônjuge teve reconhecido o direito à metade do valor integralizado das cotas empresariais em debate. Ocorre que, tendo em vista o encerramento das atividades da empresa após a separação do então casal, constatada na data da avaliação, o objeto partilhado consiste, em última instância, no próprio capital investido na sociedade à época do relacionamento, devidamente atualizado.

Tendo em vista que o encerramento da empresa não deve impor ao ex-cônjuge, que ficou privado do patrimônio relativo às mencionadas cotas, o ônus de arcar com os prejuízos decorrentes da administração exclusiva, incabível o afastamento dos juros no pagamento das perdas e danos sobre o valor financeiro do mencionado bem sob pena de, ao assim o fazer, cristalizar indevido desequilíbrio na divisão de bens pactuada quando da partilha.

Assim, diante do encerramento das atividades negociais, resta ao devedor suprir o valor integralizado outrora alocado na empresa e por ele gerido exclusivamente, convertendo-o nos autos em perdas e danos aptos a representar os direitos patrimoniais sobre as cotas sociais então devidas à recorrida. Por esse motivo, correta a avaliação que inclua não só a obrigação principal, mas também seus acessórios, ou seja, juros e correção monetária.

Na presente situação, por sua vez, discute-se justamente realidade fática em que o "varão ficou na posse e administração da pessoa jurídica, que encerrou suas atividades após a separação".

Na espécie, a ex-cônjuge teve reconhecido o direito à metade do valor integralizado das cotas empresariais em debate. Ocorre que, tendo em vista o encerramento das atividades da empresa após a separação do então casal, constatada na data da avaliação, o objeto partilhado consiste, em última instância, no próprio capital investido na sociedade à época do relacionamento, devidamente atualizado.

Tendo em vista que o encerramento da empresa não deve impor ao ex-cônjuge, que ficou privado do patrimônio relativo às mencionadas cotas, o ônus de arcar com os prejuízos decorrentes da administração exclusiva, incabível o afastamento dos juros no pagamento das perdas e danos sobre o valor financeiro do mencionado bem sob pena de, ao assim o fazer, cristalizar indevido desequilíbrio na divisão de bens pactuada quando da partilha.

Assim, diante do encerramento das atividades negociais, resta ao devedor suprir o valor integralizado outrora alocado na empresa e por ele gerido exclusivamente, convertendo-o nos autos em perdas e danos aptos a representar os direitos patrimoniais sobre as cotas sociais então devidas à recorrida. Por esse motivo, correta a avaliação que inclua não só a obrigação principal, mas também seus acessórios, ou seja, juros e correção monetária.

                QUESTÃO 33

                Igor Samambaia conjuntamente com Fernando Limoeiro e Patrício Coqueiro montaram um supermercado no bairro em moravam desde que nasceram. O negócio ia bem, até que surgiu a pandemia do coronavírus, e as demissões dos empregados, em virtude dela, foram em massa. Para não fecharem as portas o lema dos dias era enxugar despesas. Começaram por questionar a cobrança do imposto de ICMS sobre as sacolas plásticas que forneciam aos clientes, ao argumento de que tal prática de fornecer sacolas plásticas aos clientes consistia em mera facilidade de acomodação do produto ao consumidor, não consistindo tal insumo como essencial a atividade dos supermercados. Pergunta-se: Qual a natureza jurídica das sacolas plásticas fornecidas no supermercado?

                Resposta: Trata-se de insumo não essencial, não sujeito, portanto, a tributação do ICMS. A questão bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça que, na lavra do Informativo 666, decidiu o seguinte. Veja bem. Apenas o insumo indispensável ao acondicionamento de produtos perecíveis é que encontram-se sujeitos a tributação do ICMS, o que não se dá com as sacolas plásticas. As sacolas plásticas, constituem insumos acessórios, que não se incorporam ao produto final.  A nosso sentir, são meros facilitadores do transporte dos produtos, não consistindo em insumos essenciais a atividade dos supermercados, tanto assim o é, que muitos supermercados fornecem caixas de papelão para o transporte final dos produtos e, nem por isso, alegamos o dever ao creditamento de ICMS sobre elas! Para sermos fiéis ao que decidiu a Corte Cidadã sobre o tema reproduzimos, ao leitor, trecho da decisão. Confira:

                Os insumos que geram direito ao creditamento são aqueles que, extrapolando a condição de mera facilidade, se incorporam ao produto final, de forma a modificar a maneira como esse se apresenta e configurar parte essencial do processo produtivo. Sacos e filmes plásticos utilizados exclusivamente para o fornecimento de produtos de natureza perecível são insumos indispensáveis à atividade desenvolvida pelos supermercados, de modo que a sua aquisição gera direito ao creditamento do ICMS. Sacolas plásticas fornecidas aos clientes para o transporte ou acondicionamento de produtos, bem como bandejas, não são insumos essenciais à atividade dos supermercados, de modo que não geram creditamento de ICMS. STJ. 1ª Turma. REsp 1.830.894-RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 03/03/2020 (Info 666).

             QUESTÃO 34

                Espelho, espelho meu existe mulher mais bonita do que eu? Emengarda Aluada nasceu com os predicados da beleza. Sonhava em ser modelo de sucesso, mas achava que a vida havia lhe dado poucas oportunidades. Após o falecimento de seu amado pai, Aluada resolveu, por bem, tomar do banco um empréstimo para o investimento em sua carreira de modelo. Ia mesmo contratar um personal styling. Queria ser chique, fina e elegante. Como garantia do empréstimo, Aluada cedeu ao banco a sua corretinha com pedrinhas de brilhantes, que ganhou de seu pai, ao nascer. A natureza jurídica de tal ato é denominada de penhor civil. Pois bem... Para azar de Aluada, a Casa Bancária foi vítima de um assalto. Os ladrões levaram boa espécie em dinheiro e bens, dentre eles, a correntinha com pedrinhas de brilhantes da Emengarda. Desesperada com a notícia, Emengarda foi até o Banco que lhe informou que nada poderia fazer. Que o assalto configurou caso fortuito externo e, além disso, mostrou a Aluada o contrato, com cláusula contratual exoneratória de responsabilidade pelo banco em caso de fortuito externo. Irresignada, Emengarda judicializou a questão, pois se o Banco não tinha culpa pelo assalto, ela menos ainda e porque, então, ela, teria que pagar a conta? Diante de tal cenário pergunta-se? O assalto bancário configura fortuito externo, a fim de eximir a instituição financeira de responsabilidade civil?

                A resposta negativa se impõe. O assalto ao banco não é tido por fortuito externo guardando mesmo a natureza jurídica de fortuito interno, ou seja, trata-se de risco inerente a atividade bancária que lida diariamente com vultosas quantias em dinheiro e, por conta disso, acaba sendo um chamarisco aos ladrões. Tal cláusula excludente, ou ainda que fosse apenas uma cláusula limitativa de responsabilidade, configura nulidade de pleno direito, nos moldes do Art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, restando clara a hipossuficiência da consumidora em empenhar a sua jóia, bem pessoal de valor que ultrapassa as cifras monetárias. Nesse sentir, instado a pronunciar-se sobre o tema a Corte Cidadã editou o enunciado sumular 638. Para sermos fiéis ao que decidiu o STJ sobre o tema reproduzimos, aqui, ao leitor, o enunciado sumular, na íntegra. Confira:

Súmula 638-STJ: É abusiva a cláusula contratual que restringe a responsabilidade de instituição financeira pelos danos decorrentes de roubo, furto ou extravio de bem entregue em garantia no âmbito de contrato de penhor civil. STJ. 2ª Seção. Aprovada em 27/11/2019.DJe 5/12/2019.

                QUESTÃO 35      

                André Fina Estampa era verdadeiro ratinho de academia. Físico invejável e sorriso colgate. Gostava de seduzir as moçoilas e exibi-las na praça do coreto da cidade em que vivia. Mas, dia desses, resolveu inovar do coreto para o cinema, e a coisa não deu muito certo. A verdade é que a mesada que recebia de seus pais era curta, ou pagava o cinema para o casal ou o lanche do cinema, os dois não dava. E, como era um galanteador à moda antiga, jamais dividiria a conta com a sua nova conquista. Pois, bem... A fim de romantizar e apimentar a relação que estava se iniciando, André furta da lanchonete do cinema a bala de caramelo; que divide entre os lábios da amada e, essa, a fim de retribuir o gesto romântico, furta a barrinha de chocolate lá exposta e as mordidas são partilhadas conjuntamente aos beijos selados. Tudo ia bem, até que foram surpreendidos pelo guarda do cinema que, de imediato chamou a polícia, que os prendeu em flagrante. Moral da história: o casal romântico foi preso por furto qualificado pelo concurso de pessoas! O Ministério Público denunciou cada qual por furto qualificado, enfatizando a reprovabilidade social da conduta de ambos. O casal, cada um de per si, impetra habeas corpus ao argumento de que a conduta afigura-se atípica (atipicidade material). E  a pergunta que não quer calar é a seguinte: Nesse caso, aplica-se ao furto qualificado, o princípio da insignificância?

                 A resposta afirmativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre um caso concreto que versava sobre a subtração de gêneros alimentícios.

                 O Superior Tribunal Justiça, na lavra do Informativo 665 assentou que em regra, não se aplica o princípio da insignificância ao furto qualificado, salvo quando a análise conjunta das circunstâncias demonstrar a ausência de lesividade do fato imputado. Para sermos fiéis ao que decidiu a Corte Cidadã sobre o tema reproduzimos, aqui trecho da decisão. Confira o leitor:

PENAL  E  PROCESSO  PENAL.  HABEAS  CORPUS  SUBSTITUTIVO  DE RECURSO.ESPECIAL.  DESCABIMENTO.  FURTO  QUALIFICADO. SUBTRAÇÃO  DE GÊNEROS ALIMENTÍCIOS. EXCEPCIONALIDADE DO CASO CONCRETO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1.  O Superior  Tribunal  de Justiça, seguindo entendimento firmado pelo  Supremo  Tribunal Federal, passou a não admitir o conhecimento de habeas corpus substitutivo de recurso previsto para a espécie. No entanto,  deve-se  analisar  o pedido formulado na inicial, tendo em vista  a possibilidade de se conceder a ordem de ofício, em razão da existência de eventual coação ilegal. 2. De acordo com a orientação traçada pelo Supremo Tribunal Federal, a aplicação do princípio da insignificância demanda a verificação da presença   concomitante   dos   seguintes   vetores: (a)  a  mínima ofensividade  da  conduta  do  agente,  (b) a nenhuma periculosidade social  da  ação,  (c)  o  reduzidíssimo  grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. 3.  O princípio da insignificância é verdadeiro benefício na esfera penal, razão  pela qual não há como deixar de se analisar o passado criminoso  do  agente,  sob  pena  de se instigar a multiplicação de pequenos crimes pelo mesmo autor, os quais se tornariam inatingíveis pelo ordenamento penal. Imprescindível, no caso concreto, porquanto, de  plano,  aquele que é contumaz na prática de crimes não faz jus a benesses jurídicas. 4.  Na  espécie,  a  conduta é referente a um furto qualificado pelo concurso de agentes de produtos alimentícios avaliados em R$ 62,29. 5. Assim, muito embora a presença da qualificadora possa, à primeira vista,  impedir o reconhecimento da atipicidade material da conduta, a  análise  conjunta  das  circunstâncias  demonstra  a  ausência de lesividade  do  fato imputado, recomendando a aplicação do princípio da insignificância. 6.  Habeas  corpus  não  conhecido.  Ordem  concedida de ofício para trancar a ação penal movida em desfavor das pacientes.

                Questão 36

                Andrey Stuard era larápio conhecido lá pelas bandas americanas. Norte-americano, de família abastada, era avesso ao sistema. Odiava política. Também era baderneiro cometendo crimes políticos em sua terra. Era  mesmo adepto do regime anarquista. Não queria Governo, menos ainda ser  governado por um governo. No anarquismo cada um cuida do seu. Contudo, como tudo o que é bom , e a sua rebeldia, para ele, era adrenalina pura, dura pouco, da última vez que foi fazer apologia ao anarquismo, defendendo a extinção do exército norte americano, a coisa não saiu conforme esperado. Foi preso e, antes do julgamento, fugiu. Da cadeia e do país. Veio refugiar-se no Brasil. A questão é que a distância geográfica não mudou os seus ideais. Aqui no Brasil continuou defendendo o anarquismo, o combate a força de segurança pública e atentando contra a ordem política do país. Fato é que passou a atirar fogos de artifícios próximos ao Congresso Nacional, xingando os deputados e senadores e pugnando pela extinção de leis, tornando-se, pois, nocivo à conveniência e aos interesses nacionais. Insatisfeito com o seu comportamento, o Ministério Público informou ao Ministério da Justiça acerca da prisão de Andrey, por supostos crimes de injúria e difamação contra os membros do Congresso Nacional. O Ministro da Justiça, de imediato, instaurou um processo administrativo para fins de expulsão de Andrey do território nacional. Todavia, dois meses após a instauração do processo Andrey veio a engravidar Maria da Rosca, que deu à luz a um menino, antes mesmo da decisão do processo expulsório. A pergunta que se faz é a seguinte: O nascimento de um filho, após a instauração do processo de expulsão, por fatos cometidos anteriormente, é fato jurídico apto a impedir a expulsão do estrangeiro do território nacional?

                A resposta afirmativa se impõe. Instado a pronunciar-se sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, na lavra do Informativo 983 entendeu que é vedado expulsar estrangeiro com prole brasileira, pois o valor de proteção à família prepondera sobre o valor da soberania nacional. O § 1º do art. 75 da Lei 6.815/1980 que preconizava que filhos nascidos posteriormente a instauração do processo expulsório não tinham o condão de impedir a expulsão não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 face a primazia da tutela familiar, abrigada na Lei Maior e na própria Lei de Migração (Lei 13.445/17), bem como ao respeito ao princípio da isonomia que veda a discriminação entre filhos, nascidos antes ou após o processo expulsório. Para sermos fiéis ao que foi decido pela Suprema Corte colacionamos, aqui, ao leitor, trecho da decisão. Confira:

                No mérito, prevaleceu o voto do relator, segundo o qual o § 1º do art. 75 da Lei 6.815/1980 não foi recepcionado pela CF, sendo vedada a expulsão, uma vez comprovado estar a criança sob a guarda do estrangeiro e deste depender economicamente. O ministro registrou a presença de valores constitucionais como a soberania nacional, com a manutenção de estrangeiro no País, e a proteção à família, ante a existência de filho brasileiro.
Lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF), diversas vezes, decidiu no sentido de que a existência de filhos nascidos após o fato criminoso não seria oponível à expulsão. No entanto, as questões relativas aos requisitos para expulsão foram reiteradamente examinadas somente com fulcro na interpretação isolada do art. 75 da Lei 6.815/1980. Assim, compreendeu ser necessário aprofundar a evolução no tratamento da matéria, atentando para a CF, que define a família como base da sociedade e estabelece o direito da criança à convivência familiar [arts. 226, caput, e 227, caput, (3)]. Esclareceu que a CF de 1988 inaugurou nova quadra no tocante ao patamar e à intensidade da tutela da família e da criança, assegurando-lhes cuidado especial, concretizado, pelo legislador, na edição do Estatuto da Criança e do Adolescente. O sistema foi direcionado para a absoluta prioridade dos menores e adolescentes, como pressuposto inafastável de sociedade livre, justa e solidária. Por isso, é impróprio articular com a noção de interesse nacional inerente à expulsão de estrangeiro quando essa atuação estatal alcança a situação da criança, sob os ângulos econômico e psicossocial. O § 1º do art. 75 da Lei 6.815/1980 encerra a quebra da relação familiar, independentemente da situação econômica do menor e dos vínculos socioafetivos desenvolvidos. A família, respaldo maior da sociedade e da criança, é colocada em segundo plano, superada pelo interesse coletivo em retirar do convívio nacional estrangeiro nocivo, embora muitas vezes ressocializado. A seu ver, priva-se perpetuamente a criança do convívio familiar, da conformação da identidade. Dificulta-se o acesso aos meios necessários à subsistência, haja vista os obstáculos que decorrem da cobrança de pensão alimentícia de indivíduo domiciliado ou residente em outro País. Dessa maneira, impõe-se à criança ruptura e desamparo, cujos efeitos repercutem nos mais diversos planos da existência, em colisão não apenas com a proteção especial conferida a ela, mas também com o âmago do princípio da proteção à dignidade da pessoa humana. Além disso, o preceito da Lei 6.815/1980 afronta o princípio da isonomia, ao estabelecer tratamento discriminatório entre filhos havidos antes e após o fato ensejador da expulsão. O relator ressaltou que os prejuízos associados à expulsão de genitor independem da data do nascimento ou da adoção, muito menos do marco aleatório representado pela prática da conduta motivadora da expulsão. Se o interesse da criança deve ser priorizado, é de menor importância o momento da adoção ou da concepção. Esse entendimento não esvazia a soberania nacional. O estrangeiro continua obrigado a comprovar ter filho brasileiro sob a própria guarda e dependente economicamente. Ou seja, exige-se do estrangeiro a demonstração de vínculo qualificado com o País, apto a autorizar, dentro das balizas legais, a sua permanência em território nacional. Por fim, o ministro observou que a Lei 6.815/1980, regedora da espécie, foi suplantada pela nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017), que não repetiu o contido no preceito em debate.

RE 608898/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 25.6.2020. (RE-608898)